quarta-feira, 28 de maio de 2008

Correspondência

R.S.V.P.
Soundtrack: Rita Lee - Cartão Postal


Quando aquele cartão escorregou pelo vão da porta – sem remetente, mensagem ou assinatura – a intenção primeira foi largá-lo ignorado em meio à confusão de papéis sobre a mesa. Ela então não sabia que algumas pessoas tinham o poder de, disfarçadas de postais, cruzar o espaço para se materializar diante de outras; se deu conta disso quando, ao reter nas mãos aquele pequenino retângulo de papel, se surpreendeu com a nítida sensação do corpo arrepiando-se, solicitado pela carícia inusitada das mãos do outro. Sorriu diante da sua momentânea ingenuidade – ele, que tanto já se metamorfoseara em música, intenção e memória, por que não haveria de chegar até ali sob aquela forma tão insuspeita e, ao mesmo tempo, tão incontestavelmente característica? Estava lá, se impondo sobre o que, à primeira vista, era não mais que uma reprodução da paisagem do Jardim Botânico, os detalhes inconfundíveis lhe saltando aos olhos, tomando corpo, criando covinha no queixo, barba por fazer, camiseta branca, tatuagem no peito. Sardas, muitas sardas, nos ombros, nas costas, como pequeninos beijos fincados na pele. A risada contida e o meio-sorriso. Despropósito dos despropósitos, mas perfeitamente possível.

Observou o cartão com minúcia desapressada, deixou que os dedos deslizassem com carinho pela superfície lisa, uma, duas, três, muitas vezes. Nenhuma frase, nenhuma palavra. Desnecessárias, ambas; o que havia de ser dito, fora dito naquela fotografia – uma cidade, um destino. Sem carimbo do correio. Sem intermediários, entremeios, entrelinhas, subterfúgios, subliminariedades, mas com endereço certo: ele. Sentou-se diante do computador, ensaiou escrever um e-mail, desistiu logo em seguida, tantas coisas queria dizer e as palavras parecendo inapropriadas, insossas, furtivas. Então rabiscou um bilhete imaginário, perfumou-o, beijou-o demorada e cuidadosamente – para que nele ficasse o desenho dos lábios pintados com o batom preferido – e lançou ao vento a inusitada correspondência onde se lia, em letras caprichadas: “Sabe vontade? Além.”

domingo, 25 de maio de 2008

In Media Res

Eu sou este instante que me preenche os olhos.
E este mundo que me preenche o peito.

Soundtrack: Smashing Pumpkins - Landslide



A cada dia me convenço mais e mais de que eu não sei sentir. Talvez porque as emoções se apossem do meu espírito de maneira tão exacerbada que se acotovelam em completa desordem dentro de mim, em um crescente disrítmico e irrefreável. É esse o meu estado natural, portadora resignada de uma bola no peito, imensa e quase asfixiante – meu coração, talvez, cansado de tentar conter o incontinente. Carrasco da minha paciência pergaminhada desabando exausta num leito quieto de intenções cheirando à iminência de rompantes, vitimada por uma angústia que não é angústia e nem deve ter nome de tão particularmente sentida.

Fome, talvez, de vontades. A vontade coibida é uma rosa murcha – o azedume do cheiro, a aparência macerada de coisa cuja hora passou, o rubro virado em tom-qualquer-um, a aversão completa, quase com um quê de piedade, provocada por essa visão de quase-morte, ou quase-vida. E a bola no peito crescendo, crescendo, crescendo, crescendo. Crescendo. E eu fico quieta, muito quieta, naquela imobilidade agressivamente vigil de quem espreita a urgência de um grito, e, de repente, zás! – aquela explosão de sempre, tão destrutiva quanto regeneradora, caos restabelecendo a ordem e o peito serenando, serenando, serenando, serenando... serenando... porque sou aquela intenção de sempre, aquela tensão de sempre, aquela vazão de sempre. Aquela, de sempre.

Não sei sentir, talvez nunca saiba. E minha resignação diante dessa falta é a prova cabal de que tal aprendizado se opõe diametralmente à minha natureza de criatura exacerbada, se debatendo contínua e violentamente dentro de um corpo frágil e limitado até a completa exaustão – derramada inteira nos próprios olhos, estremecida, ávida de sentires caudalosos e irreprimidos. Não sei sentir – e me entrego sem resistências a esse não saber. Desisto de tentar ser quem não sou, de ignorar que carrego no peito o que me pertence. Ninguém consegue medir forças consigo mesmo por tanto tempo.


*In Media Res: expressão latina que significa literalmente "no meio dos acontecimentos".

E tem post novo lá no Espasmos de Riso. A história de como uma menina indefesa - eu - foi transformada em um cogumelo cabeludo por uma bruxa malvada. Duvidam? Pois passem lá e conheçam detalhes do "causo"...

Nobreza

"Entrou no ônibus semivazio dividindo o equilíbrio entre o filho de colo e uma sacola plástica abarrotada de cacarecos; era tão esquálida que parecia na iminência de vergar sob o peso da criança que trazia nos braços. O arranque displicente do veículo quase a derrubou no chão, teve de largar a sacola para proteger a si e ao menino da queda. Nem esperou que alguém se oferecesse para ajudá-la: abaixou-se, as pernas ligeiramente afastadas, o bebê colado ao seu tronco com firmeza cuidadosa por uma das mãos enquanto a outra se espichava, elástica, para recuperar o objeto momentaneamente perdido. Ergueu-se com cuidado, o corpo se apoiando nos assentos, pagou a passagem, cruzou a roleta e, a passos vagarosos, acompanhados pelos olhares dos outros passageiros, se dirigiu a um lugar próximo à saída.

Acomodou-se como pôde, quase desaparecendo sob a montanha formada pela sacola e pela criança, esta já se agitando num choramingo de impaciência faminta. Ajeitou com capricho a manta e touca do filho, lhe ofereceu o seio, deixou que o menino abrandasse sua fome naquele peito magro. O calor do meio-dia transformava o coletivo em uma estufa; o ar quente e em movimento inundava-lhe as narinas de odores, despertando a fome naquele corpo tão acostumado a privações. O garoto sardento de óculos e uniforme escolar, sentado no banco paralelo ao seu, a observava fixamente desde que ela pusera os pés naquele ônibus. Estava acostumada a ser alvo de análises e observações; gostar, não gostava, mas fazer o quê, era ignorar e pronto. Aquele garoto acabaria encontrando distração melhor.

O bebê, faminto, lhe abocanhava o mamilo com voracidade, as gengivas comprimindo a aréola dolorosamente, sensação que se traduzia na expressão de seu rosto contraído. O coletivo corria aos solavancos; mais de uma vez teve de se agarrar ao assento da frente para não se machucar. Onde será que aquele motorista havia aprendido a dirigir? Tornou a arrumar as roupinhas do filho, vestido com capricho apesar da pobreza; o pequeno era cuidado com todo seu esmero de mãe. Preocupava-lhe o futuro do menino – e o futuro, no caso dos dois, era o dia seguinte, tão próximo e, ao mesmo tempo, tão incerto. Tão incerto."


Essa história continua aqui, em Novas Visões. Espero vcs por lá!


P.S.: ainda tem post da Mila no Espasmos. Quem curte escatologia e ainda não leu, não perca.

Beijos!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Importante!!

Uma das características mais fantásticas do ser humano é a solidariedade; a capacidade de doação de uma pessoa em favor de outra é algo que ultrapassa qualquer entedimento. E só quem é beneficiado por gestos solidários sabe o valor que um desses gestos representa - muitas vezes deixamos de fazer coisas por acreditar naquela velha máxima da gotinha no oceano, mas vale lembrar que cada gotinha dessas pode ter uma importância incomensurável na vida de quem a recebe.

Hoje vi uma mensagem no Intimidade, da Tâmara, que me tocou muito. Trata-se da reprodução de um pedido que havia sido postado em um outro blog, cujo conteúdo é o seguinte:

"Meus amigos,

Não comentei aqui antes por se tratar de um drama pessoal de um amigo blogueiro. O extinto HYNKEL foi dos primeiros blogs que conheci e que se manteve na ativa por muitos anos. Infelizmente, meses atrás, o FELIPPE descobriu estar muito doente e resolveu fechar o blog, mas criou outro, o
CERUMANO - onde passou a descrever tudo que acontecia com ele e sua doença. Atualmente os médicos diagnosticaram que ele desenvolveu leucemia mielóide aguda (LMA) e precisa URGENTEMENTE de um transplante de medula. Peço aos amigos que não só divulguem, mas que, quem puder, faça o teste de compatibilidade. Maiores informações no blog do FELIPPE, o CERUMANO".

E é isso, gente. Vamos fazer a nossa parte - a simples divulgação pode fazer uma grande diferença. Quem morar no Rio de Janeiro - onde mora o Felippe - e/ou adjacências e puder fazer o teste de compatibilidade, fica aqui o meu pedido. Pra galera do resto do Brasil, fica a sugestão da divulgação dessa causa que é mais do que urgente, e uma observação: no país inteiro tem gente morrendo nas filas de transplante de medula à espera de um doador compatível. Por isso, convido a todos a fazer uma visita ao hemocentro mais próximo da sua cidade para saber mais a respeito das leucemias e, quem sabe, se tornar mais um na luta contra essas doenças - seja como divulgador, doador, captador de doadores ou formador de opinião. E, como a desinformação é a maior inimiga da adesão, vale dar uma olhada no site do Instituto Nacional do Câncer -INCA, para conhecer um pouco mais sobre a LMA e sobre doação de medula óssea.

Muito, muito obrigada.

Beijão pra todo mundo!

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Movimento Rápido dos Olhos

Das realidades sonhadas.

Soundtrack: Sonic Youth - Superstar


Deitou seu corpo pequeno de mulher sobre a cama atapetada de roupas despidas e lembranças úmidas, desprovidas de pudor ou culpa. De olhos fechados, deixou-se acariciar pelo cheiro dele, cheiro que ficara fresco, atrevido, nas suas pernas e braços, transfigurado em dedos, e afagos, e lábios... o beijo foi inevitável, a língua seguiu tácita e desimpedida tecendo rastros sobre a quentura da pele já ferida de vontades, indo segredar seu gosto rubro em orelhas e boca e nas sinuosidades ofegantes da respiração entrecortada pelas palavras nascidas naquele silêncio de comunhão.

Ele a chamara furacão, ela era brisa se desmanchando naquele peito de ausência tão presente. E havia a necessidade veemente e imediata de se entregar à urgência do corpo que emergia da quietude da noite para, incontido e crescente, apossar-se do seu. Havia a necessidade, e ela não se opôs às mãos imaginárias que vorazes a alcançavam inteira, nem se furtou ao seu ímpeto; ao torpor daquela fúria doce submeteu-se obediente, lânguida, as pernas se entreabrindo submissas, caminho e destino que eram do seu desejo.

Ele a fez sua num possuir de corpo todo, entre membros confundidos e a agonia de prazeres entrelaçados. Exausto, tomou-a nos braços, lhe acariciou o ventre com os dedos ainda trêmulos; a qualquer-coisa dita ao ouvido num sussurrado preguiçoso a fez sorrir. Então aconchegou-se-lhe ao seio e retornou para aquele peito inteiro morada sua. Ela virou-se de lado, se abraçou espreguiçante ao travesseiro e adormeceu. Um beijo invisível lhe veio pousar sobre o suor tranqüilo da face.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Presentes!

Essa foi uma semana muito, muito feliz aqui no Sabe de uma Coisa. Fui lembrada e presenteada por três blogueiros queridíssimos, a quem admiro tanto pelo conteúdo de seus respectivos blogs quanto pelas pessoas que demonstram ser no dia a dia.



O Oscar, do By Oscar Luiz- que dispensa apresentações - me presenteou com o selinho Este é um Blog Muito Bom, Sim Senhora!... agradeço de coração e fico muito orgulhosa com a lembrança, pois o Oscar foi um dos primeiros blogueiros que tive o prazer de conhecer aqui na blogosfera; além disso, tive o prazer maior ainda de conhecê-lo pessoalmente e constatar a simpatia de pessoa que ele é. Oscar, obrigada por tudo. E, cumprindo os rituais, repasso o presente para 5 blogs realmente muito bons: Ciça, Tâmara, Paloma, Fê Probst e Renatinha.




Do Marcelo, lá do Amenidades, e da gracinha da Fê Probst, do P.S., ganhei o selo "This Blog Makes me Think". Esse, minha gente, teve um sabor duplamente especial. A Fê eu conheço há pouco tempo, mas me perco em admiração pela sua forma delicada de escrever. O Marcelo eu conheço desde o comecinho da minha vida blogueira, ainda no extinto Cotidianidades, e eu adoro o estilo dele de escrever sobre os mais variados assuntos, desde os mais intimistas e reflexivos até aqueles temperados com o seu característico humor refinado. Além do selo ter sido um presente dele, foi criado também por ele, para presentar os blogs que gosta - e este aqui é um dos 7 blogs escolhidos pelo criador do mimo para receber o presente diretamente das mãos dele. E sei que ele é super criterioso com o que escolhe para ler. A justificativa:

Aprecio particularmente em blogs as diversas opiniões e pontos de vista sobre problemas cotidianos, dores de amores, alegrias de amores, amizades, política, sexo e filosofias de todos os tipos.Aprendo muito com isso, aprendo a escrever, a respeitar visões diferentes da minha, aprendo que posso estar errado sobre muitas coisas e aprendo que cada um sente (e entende) a vida de uma forma bem particular. Alguns desses blogs normalmente me fazem pensar mais longamente sobre os assuntos que abordam, e gosto muito disso. Gosto e valorizo muito o chamado conteúdo.Não que os outros blogs que leio não tenham conteúdo, eles tem e muito. Acontece que esses que me refiro são daqueles blogs que faço questão absoluta de ler porque sei que vou sempre encontrar neles assuntos e opiniões que bagunçam as minhas...Portanto, criei um pequeno selo (ou homenagem, ou reconhecimento) para esses blogs. São 7 os indicados, mas são bem mais do que 7 os blogs que tem essa característica que citei acima. Os indicados, caso queiram, podem indicar mais 7 blogs que fazem pensar.

Marcelo e Fê, eu nem sei como agradecer. Fico muito feliz, mesmo, pela lembrança. E eu vou indicar, sim, porque conheço muita gente que me faz pensar nesse mundo blogueiro. Repasso o selo para Juliana Caribé, Filipe Garcia, Edu, Van, Thiago, Leila Saads e C..

É isso. Beijo pra todo mundo!

P.S.: essa eu não posso deixar de contar. Há poucos minutos, antes de escrever esse post, me bateu a curiosidade de verificar, no contador de visitas, as palavras-chave usadas pela galera pra chegar até esse blog. Em meio ao óbvio, uma bizarria sem tamanho: alguém conseguiu chegar até aqui usando como buscador o termo fotos de capturados pelo BOPE. A pergunta que não quer calar é: BOPE e eu... qual será o elo perdido?!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Meme e Papo Sério


1) PAPO SÉRIO:


Essa questão foi abordada pela Ciça lá no blog dela, e eu achei tão justa que acabei trazendo pra cá. Como achei o que ela escreveu bem sucinto e explicativo, resolvi transcrever na íntegra e compartilhar com vocês a divulgação dessa campanha:


"Tem uma campanha rolando aí pela internet em prol dos direitos dos animais. A campanha quer conseguir uma Declaração Universal do Bem-estar dos Animais nas Nações Unidas. Essa decaração assegura aos animais o direito de serem tratados com respeito e menos crueldade. Para isso, são necessárias 10.000 assinaturas.

Atualmente é incontável o número de animais domésticos que são abandonados nas ruas pelos seus donos; milhões de porcos e vacas são criados para serem abatidos em sistemas industriais sem o menor bem-estar; existem incontáveis animais sivestres mantidos em cativeiro para puro entretenimento; sem contar nas crueldades que fazem com os animais de circo.

Entrem no
site e conheçam mais sobre a campanha, assinem, divulguem e e ajudem a construir um mundo melhor para todos os animais."

Eu já assinei. E convido todo mundo a assinar também - é rápido, de graça, não dói e pode fazer um bem danado a um número incontável de animais que vivem no sofrimento por esse mundão de Deus. O link estará permanentemente disponível aqui no Sabe de uma Coisa?, aí na coluna da direita (vide seção "Eu Leio"). Quem estiver a fim de divulgar a campanha levando o texto e o link do site para o seu blog, agradeço de coração.


2) MEME:

A C. me incumbiu da tarefa de listar 5 livros que amo e um que eu não leria de jeito nenhum a não ser em caso de auto-flagelação. Como existem muitos livros que amo, selecionei 5 que foram marcantes em determinadas fases da minha vida. Talvez não tenham sido os livros mais espetaculares que li do ponto de vista acadêmico, mas foram, sem dúvida, alguns dos inesquecíveis.

Dom Casmurro (Machado de Assis): livro surrupiado da estante do meu pai quando eu tinha uns 13 anos, depois de perguntar a ele, pela milésima vez, porque insistia em me chamar de "morena de olhos de cigana oblíqüa e dissimulada" e ouvir em resposta que era uma alusão à personagem feminina em torno da qual se desenvolve a narrativa - foi a primeira vez que um livro me fez pensar sobre toda a complexidade da alma humana... já perdi as contas de quantas vezes o li. E sempre me surpreendo com alguma coisa.

O Pequeno Príncipe (Saint-Exupéry): Dispensa motivos. E eu não tenho pudor nenhum em assumir a minha idolatria por esse livrinho. O meu exemplar tem 23 anos de existência (a primeira leitura foi feita nos meus remotíssimos 7 anos de idade) e já está meio amarelado... mas a maneira simples e emocionante de falar sobre amizade faz com que a estória seja atemporal, e sempre me tira sorrisos e me traz lágrimas aos olhos. É, eu sou chorona - essa cara de blasé aí na foto é a maior potoca do mundo.

O Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos): Variação sobre o mesmo tema: amizade. A primeira leitura foi feita nos meus 12 anos. Também dispensa motivos, também me leva às lágrimas, também me tira sorrisos... Ressaltando que a história é um relato da infância do autor e aborda temas delicados como conflitos familares, mudanças e o ruir das primeiras ilusões. Irretocável e imperdível.

Antologia Poética (Carlos Drummond de Andrade): porque eu amo Drummond, sempre amei e sempre vou amar (e nesse "sempre" se incluem todas as minhas encarnações vindouras). Acho que não precisa mais...

As Cem Melhores Crônicas Brasileiras (autores diversos): é o livro da vez. A melhor aquisição que fiz no ano. Classificado cronologicamente, por décadas; o organizador, Joaquim Ferreira dos Santos, teve o cuidado de escolher trabalhos muito representativos de cada período, numa precisa e deliciosa mostra do que de melhor já se escreveu nesse gênero, no país. A leitura das mais de 300 páginas é só prazer: o livro traz Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, João do Rio, Lima Barreto, José de Alencar, Rubem Braga, Vinicius, Oswald e Mário, Graciliano, Paulo Mendes Campos, Drummond, Millôr, Clarice, João Ubaldo, Cony, Ferreira Gullar, Jabor e tantos outros craques da nossa literatura. Biscoito fino, daqueles que a gente saboreia estalando a língua de gosto...

São poucos os livros que eu transformaria em calço de mesa ou coisa parecida, mas existe um que, sem dúvida, teria esse vil destino: A Lira dos Vinte Anos (Álvares de Azevedo). Perdoem-me os fãs do autor e os críticos, mas eu não sou nem uma coisa nem outra, sou apenas uma humilde e ignorante leitora, então estou liberada para dizer que não gosto - o livro in-tei-ro tem aquele tom depressivo dos poetas românticos acometidos pelo "mal do século", aquela coisa de morte, tristeza infinita, amor não realizado, versos com elementos do tipo "catre imundo", "corpo decrépito", "alma agonizante"... e eu sei disso porque fui O-BRI-GA-DA a ler no último ano do colégio. Calço de mesa, na melhor das hipóteses.

Repasso a tarefa para Juliana Caribé, Camilinha, Fê Probst, Petê e Oscar. E até o final da semana volto pra repassar os presentes que ganhei. :))


Beijos!

UPDATE:

Tem post novo da Mila no Espasmos de Riso Descontrolado, minha gente. Vocês conhecem alguém que já tenha tido problemas de vesícula? O cidadão enjoa só de pensar em comida... Pois bem: coloquem essa pessoa no meio de um engarrafamento, com purê de batatas no estômago e uma aguinha duvidosa ao alcance da boca... o resultado (desastroso) desse mix tá lá. Não deixem de ler!

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Crisálida

Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

(Carlos Drummond de Andrade)

Soundtrack: Rose Hill Drive - It's Simple


Despertou por volta do meio-dia. A cabeça, pesada, pulsava latejante como um ferimento aberto... O olhar ainda meio desfocado procurou preguiçoso pela garrafa de vinho na qual mergulhara na noite anterior. Vazia, abandonada ao pé da cama. Por que não estava surpresa? Não fora a primeira vez que uma garrafa de vinho lhe servira como companhia em uma noite solitária; provavelmente não seria a última.

Enfiou novamente a cabeça debaixo dos lençóis na tentativa de voltar para o sono letárgico do qual despertara a contragosto; o quarto, mergulhado na penumbra proporcionada pelas cortinas cerradas e janelas fechadas, lhe parecia atraente demais para que ela ensaiasse qualquer tentativa de levantar e encarar o mundo lá fora. Foi necessário um grande esforço para que, finalmente, decidisse se desencasular de sua crisálida de cetim e voltar à realidade, embora esta não fosse exatamente a melhor opção segundo seu confuso e peculiar ponto de vista.

Levantou-se lentamente e caminhou, ainda cambaleante, até a janela; experimentou entreabrir as cortinas escuras. Um facho de luz quente e sufocante atingiu-lhe em cheio o rosto que, acostumado à escuridão das últimas horas, contorceu-se em uma careta. “Mais tarde”, ponderou. Agora precisava de um café. Forte, bem forte. Bem quente, para incendiar todo aquele torpor que a envolvia como tentáculos de polvo. Amargo, como o gosto teimoso e impertinente de não sei o quê a habita-lhe permanentemente a boca. Precisava de um café. Colocou a água para ferver, imaginando as moléculas do líquido a se agitarem com o calor do fogo; a idéia de uma ducha morna brotou, lhe parecendo a chance de uma carícia para o corpo martirizado pelo vinho, pelas contrariedades, pela solidão tão odiada e companheira... Sim, tomaria um bom banho e depois, com corpo e alma limpos, sorveria a negra bebida dos deuses.

Abriu as torneiras, regulou a temperatura e, como de costume, observou a água fluir, por alguns segundos desejando que o curso dos acontecimentos que permeavam seus caminhos fosse assim cristalino e previsível. Deixou-se molhar, se permitindo a sensação reconfortante e há tanto ignorada de extirpar tudo o que a incomodava – ao menos por breves instantes – apenas para entregar-se ao prazer de pensar em absolutamente nada. A água quente a escorrer pela pele funcionava como um resgate de si própria. Ouviu o ruído da chuva anunciando-se do lado de fora, o burburinho tímido e sussurrado crescendo e se transformando no majestoso som dos pingos desabando sobre ruas, telhados e paredes. Água, por todos os lados. Água. Como a que lhe inundava os poros. Revisitou os últimos acontecimentos de sua vida: estava cansada desse dormir e acordar sem expectativas, cansada do trabalho desempenhado maquinalmente, cansada dos relacionamentos infrutíferos, cansada, cansada, cansada. O banho lhe trouxera mais do que relaxamento: suscitara o questionamento de estar protagonizando uma existência que não era a sua. Uma idéia louca ecoou em sua mente: se aquela não era a sua vida, qual seria, e quem a estaria vivendo em seu lugar? Quem estaria morando na sua casa, amando o seu amor, passeando com o seu cachorro e fazendo todas as coisas que ela certamente faria, não fosse aquela despropositada troca?

Fechou as torneiras e olhou-se no espelho embaçado com o corpo ainda molhado. Limpou suavemente a superfície de vidro com as mãos; viu um rosto igual ao seu, porém, sob algum aspecto, diferente, a fitá-la com olhos inquiridores. Castanhos como os seus, mas vívidos, curiosos, contemplativos. Pela primeira vez não enxergou as cicatrizes que as tristezas e aborrecimentos haviam entalhado em sua pele clara. Percebeu um esboço de sorriso no rosto à sua frente, retribuiu a gentileza, o rosto lançou-lhe então um dos sorrisos mais bonitos que já havia visto. Decidiu que aquele rosto seria seu a partir daquele momento, o rosto que se havia perdido por tanto tempo mas que reencontrara na água, no espelho, em si mesma, talvez.

Lembrou-se da garrafa de vinho. Não fora a primeira, provavelmente não seria a última. Já não importava; a cabeça não pesava mais. Corpo e alma limpos. O gosto amargo da boca desaparecera como por encanto. Foi até as janelas, abriu as cortinas, deixou que o cheiro bom da rua molhada invadisse o quarto, desistiu do café. Escolheu o vestido mais bonito, justamente o que ficara esquecido no canto do armário por tanto tempo que ela nem conseguia lembrar quando o usara pela última vez. Vestiu, nunca parecera tão bonito quanto agora, percebeu que a lagarta finalmente se havia tornado borboleta. Desceu as escadas correndo, cantarolando uma música antiga, fechou a porta e partiu sem hora para voltar. Saía em busca da sua vida.


Texto publicado originalmente no extinto blog Cotidianidades, em algum dia perdido de junho de 2007. E quem gosta de rock - daquele rock mais puro, com uma levada meio setentista - e ainda não conhece Rose Hill Drive, ouça o álbum de estréia dos caras, intitulado apenas Rose Hill Drive (2006). Vale a pena.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Um

"Tu porém, terás estrelas como ninguém...
Quero dizer: quando olhares o céu de noite,
(porque habitarei uma delas e estarei rindo),
então será como se todas as estrelas te rissem!
E tu terás estrelas que sabem sorrir!
Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido.
Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá).
Terás vontade de rir comigo.
E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto...
e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu.
Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!"

(Aintoine de Saint-Exupéry em O Pequeno Príncipe)

Àqueles cuja amizade me faz crescer a cada dia.
Amo. Infinito.



Buscou-se ainda uma vez mais no coração outrora seu, que agora era do outro; viu no rosto inteiro sorriso-olho-imensidão-azul a posse de que já não dispunha, que fora dada de vontade própria e descalçada de reservas – e por que haveria de retomar para si aquele tolo, insensato coração que, assombrosamente, tão feliz batia acolhido em peito alheio? Deixou que ficasse lá, que um dia haveria de voltar – no fundo não o querendo mesmo novamente consigo, tão bonito era olhar para si e se encontrar em outra gente.

Tão bonito. Tão bonita, tão bonita aquela existência híbrida. Partira-se ao meio, o coração lhe saltara inopinadamente das mãos indo parar naquele outro ser que se escancarava afeto, virando coisa a princípio coexistida e logo depois inteiramente abdicada, tamanho o aconchego dos braços abertos da alma destinatária. Confiança desinibiu-se, entrelaçada nos dedos da alegria enfeitada de cumplicidade irmanada no amor. Tão grande e irmão amor que se fez soar individido, neste peito e naquele – e o que, outrora, fôra um, era agora parte: metades viventes uma na outra. Corações trocados, transfusão de vida. Caminhar sincronizado, passos enlaçados de amizade pura e simples. Notas consoando inteiras num sereno e retumbante bater em uníssono.


P.S.: queridos meus, tem postagem fresquinha da Anne no Espasmos de Riso - um "causo", digamos... de urgência urgentíssima... quase um alerta vermelho pra quem gosta de chocolate Charge... não deixem de conferir. Beijos a todos!