segunda-feira, 29 de junho de 2009

(A)Parte

"As cartas não eram para olhos profanos.
Não interessavam a mais ninguém.Queimei
tudo na lareira da sala, quando não havia
ninguém em casa. Cartas em fundo de gaveta
podem ser perigosas. Basta um desenho antigo,
já amarelado, um perfil marcante como uma
figura de proa avançando pelo grande
mar onde para sempre nos perdemos."


Lia Luft - Adria

Soundtrack: Coco Rosie - Not For Sale




Eu ouço a última frase fechar silenciosa a porta e caminhar sozinha rua abaixo, ainda meio atordoada por se saber inútil. Não tive coragem de dizê-la. A mim, parece ser meu coração pulsando na ponta da língua que evito pronunciar, prefiro deixar meu coração em segredo. E, das coisas todas que eu disse até aqui, nenhuma me revela tanto quanto essa omissão, que então me torna uma incógnita como o tal raio que não cai duas vezes no mesmo lugar e veja só, ele cai. Mas a frase, essa se foi sem beijo nem insistência, se foi apática e vagarosa, quase autômata, eu era uma sua desconhecida e era impossível nos reconhecermos, nós que alguns poucos momentos antes ainda nos pertencíamos. Ela não cabia, não cabe, na minha voz – a minha voz tampouco cabe no seu sentido, eu não me encaixo mais porque se dissipou de mim a tal da idéia, e o fez com uma velocidade inesperada como esse vento quente que sopra do lado de fora e corta ao meio a rigidez do inverno. Da última vez que lhe escrevi fazia um vento assim, não sei se você se recorda – e as palavras se balançavam alvoroçadas nos meus cílios fingindo-se de borboletas, que as palavras criam asas, sim, e frágeis nascem e frágeis morrem, e inocentes se atiram em vôos cegos, as minhas, cílios pesados de verbo eu sempre tive. Olhos verborrágicos. Meio por insolência, meio por descuido. Mas não é disso que falo hoje, eu hoje não falo nada. Eu hoje chão, calçada, jardim, almoço, varal, música, fé, ponta de pé, corpo de bailarina assim no espaço solto, palavra deixo ir que não me pertence. Não essa. Ou aquela; não aquela. E já não é coragem que me falta, é coragem que cultivo. Prefiro deixar meu coração em segredo.



quinta-feira, 18 de junho de 2009

Presente

Assim que vi o envelope pardo deslizar sob o vão da porta, instintivamente eu soube que era coisa sua, não me pergunte por quê. Mas ali, ainda ali, as minhas mãos tremeram. Eu sempre me encantei com a aura meio ritualística das correspondências tradicionais, e folhear meu presente soava como se um pedaço seu tivesse deixado a capital para cruzar o estado a fim de me encontrar na minha bucólica e gelada cidadezinha do interior sulista. Eu, saudosista que sou, dona dessa memória diante da qual minha serenidade jamais passa incólume, a cada página lida retornava a determinado dia perdido entre os tantos vividos desse ano que passou – alguns leves, felizes, outros áridos, difíceis. E me pergunto se, caso tivéssemos conseguido dar uma rasteira nas armadilhas ora do destino, ora da nossa natureza humana, a nossa história ter-se-ia escrito diferente, menos turbulenta. A verdade é que, apesar dos desencontros tantos, aquilo que a vida nos permitiu encontrar um no outro, dia após dia, preserva intacto seu valor, prerrogativa reservada apenas ao que nasce para ser especial e, por ser especial, jamais se vai – permanece pulsante embora metamorfoseada em coisa outra, tão única quanto; e que você e eu seremos sempre nós, com nossas rusgas e desejos, com nossas diferenças e dissoluções, com nossas semelhanças e grandes, imortais paixões.

Parabéns e obrigada – por tudo.

Pra você, toda felicidade e sucesso do mundo.

Um beijo,


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Romaria

De volta à velha forma.



Foi então que eu desisti de caminhar no encalço das horas.

Eu ora preferia aquela quietude de coisa não dita, ora encharcava-me de alma de verbo vertendo sangue até desfalecer de tanto viver. Foi então que eu vi, na palidez da sensação que se esboçava ainda ambígua, de pernas trêmulas, no esquivo e pequeno espaço compreendido entre o meu coração e a minha razão, que o sentido que eu buscara para a minha solidão rasgara voluntariamente o peito em algum espinho trôpego esquecido sob a sombra do meu corpo ainda quente das lembranças do dia seguinte. É que o dia seguinte lega lembranças mais vívidas do que todos os dias que se foram; é que a hora passada morre e leva consigo todo e qualquer fogo. Do que não havia, nem jamais houvera, restava uma iminência pesando-me sobre os ombros; do que não havia, nem jamais houvera, restava um instante sufocado sob o que de fato foi – mas ora, o que, de fato, foi? Do que não havia restava tanto, eu nunca contente com meio-parte-nada-quase, eu nunca contente com menos que tudo, eu sempre engolindo faíscas do mundo e devolvendo-me inteira em permuta, eu que não barganho indulgência nem coisa alguma e me permito a cega inocência das paixões sem culpa, eu que já não me sabia, eu não me sabia: eu era a gota de caos a me fazer falta enquanto a vida seguida dolorosamente plácida, eu que não tenho sossego, eu não tenho sossego, eu não quero sossego, eu que já não me cabia, eu não me cabia. Mas era a vez de me recolher no calor de novos planos e de aquecer as mãos entre os dedos longos do tempo nascente, que o tempo sempre chega e parte e castiga e abençoa e pede perdão, que o tempo sempre morre e nasce de mãos enlaçadas às de quem lhe perdoa os desatinos.