segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Esse Emaranhado Inominável de Sentires Vulgarmente Chamado Amor

"A coisa nenhuma deveria ser dado um nome,
pois há perigo de que esse nome a transforme."

Virgínia Woolf


Eu não saberia responder essa pergunta, entenda; talvez por isso me seja indiferente admiti-la no espaço insinuado entre os balbucios das palavras que não digo e os batimentos do meu coração – e tampouco me desconcerta vê-la me entreolhar nesses soslaios densos, nesses instantes que escapam à intuição na insistência de serem racionais. Porque igualmente me falta a capacidade de nomear aquilo cujo sentido está justamente na definição não havida, embora tão compreensível... e porque gosto, porque simplesmente gosto de renegar a força da palavra, e gosto de me ater à força dos sentires.

Por isso não afirmo que seja isto nem aquilo. E deixo que tal pergunta impertinente se cale quando minha alma se aprofunda numa paz recôndita e quente, uma paz rósea como róseo é cada cálice de pele e boca e olhos onde se bebe e se come dessa coisa doce e sagrada cujo sentido verbo algum alcança, onde se embebem os sonhos e se escondem os medos porque é depositária de todas as confianças e também de todas as desconfianças, é nas veias da minha alma assim enternecida que corre essa felicidade sanguínea e organicamente incorporada... E deixo que a resposta se dilua na confluência das imperfeições que fazem dessa coisa sagrada e doce tão extraordinariamente perfeita, e que se esvaia obediente, quase súplice, para a parte de mim que é imune ao visgo das conjecturas – onde eu não posso negá-la nem desentendê-la – e que aí se desfaça e me desfaça, e me restabeleça consigo, com sua significância tamanha e despalavrada. Eu deixo e é assim que a compreendo, e só.

Então o que é, eu não sei. Sei apenas que é, prescindindo de maiores razões para sê-lo. E aceito que apenas seja e que se revele a mim inexplicada e sem alegorias, e flua... e nessa ciência viro muitos sentidos, um coração acelerado e nenhuma boca – deixo a voz nua de qualquer palavra que possa profanar essa existência pura e deliciosamente invasiva, essa liberdade, esse cárcere, esse emaranhado inominável e misterioso de sentires vulgarmente chamado amor.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Campanha Anti-Ecológica

Na contramão da atual mobilização pró meio ambiente – quando a palavra de ordem é a preservação da vida no planeta – eis que uma espécie descontroladamente proliferada desponta como uma iminente ameaça ao ecossistema: o Machossaurus terrificus.

Uma das características mais marcantes – e aterrorizantes – do machossauro é a capacidade de mimetizar o Homo sapiens, espécie de quem costuma usurpar as fêmeas no período do acasalamento. É onde mora o perigo: uma vez que a eleita esteja em seu poder, o machossauro abandona a aparente docilidade típica da fase de conquista e assume sua natureza de predador feroz e implacável. Os espécimes de Machossaurus terrificus costumam demarcar seus territórios com unhas, dentes, paus, pedras e o que mais estiver à mão: têm como hábito manter as companheiras cativas e isoladas do restante do grupo e, em caso de violação desse instinto, partem impiedosa e invariavelmente para o ataque – ainda que sua presa seja completamente inofensiva.

Machossauros, via de regra, não são monogâmicos. Habitam com uma fêmea responsável pelos cuidados com o núcleo familiar, mantendo relacionamento com diversas fêmeas secundárias – com as quais, muitas vezes, chegam a gerar numerosa descendência. O Machossaurus terrificus é um expert na arte da camuflagem desde a infância: a mesma ninhada pode ser composta por filhotes de ambas as espécies e, embora gerados e criados por fêmeas de H. sapiens, muitos filhotes acima de qualquer suspeita se tornam, na idade adulta, machossauros com instintos ainda mais selvagens que seus genitores.

Machossaurus terrificus adultos, com clã constituído, usualmente deixam de lado o artifício da dissimulação e se tornam permanentemente agressivos – exceção feita apenas ao Machossaurus terrificus gallinaceous, variante pacífica cuja característica primordial é a poligamia. Os demais asseguram a permanência dos integrantes do clã através do abuso da força física e da evocação do medo; como vampiros, alimentam-se da energia vital daqueles que os rodeiam. Por não possuírem predadores naturais, continuam a se multiplicar como pragas, representando perigo constante, sobretudo para as fêmeas do H. sapiens – perigo que só se tornaria de menor monta caso os espécimes fossem identificados, domados e domesticados ainda em tenra idade.

Existe ainda uma outra espécie à solta, tão perniciosa quanto o Machossaurus terrificus, cuja atividade predatória se processa de forma mais sinuosa, mas, nem por isso, menos letal: a Maryia gasolinensis.

A M. gasolinensis, de forma similar ao machossauro, confunde-se facilmente com a fêmea do H. sapiens. Os espécimes são vistosos, exuberantes – característica que lhes permite atrair a presa sem muito esforço. Uma vez alcançado este objetivo, o traiçoeiro animal estabelece uma relação de franco parasitismo com a vítima, tendo o cuidado de mantê-la organicamente funcionante durante certo tempo – até que se satisfaça completamente ou encontre uma presa mais atraente.

M. gasolinensis são animais sugadores por excelência. Seu organismo complexo é equipado com ventosas amplamente distribuídas – as mais letais, utilizadas pelos espécimes em idade reprodutiva com fins de otimizar a procriação, estão localizadas no órgão de cópula, ligando definitivamente a M. gasolinensis ao H. sapiens através de sua descendência.

A seleção natural fez com que a M. gasolinensis se diferenciasse em diferentes subespécies, conforme a necessidade de adaptação ao meio. As mais encontradas na natureza são a M. gasolinensis futebolensis, M. gasolinensis empresariensis, M. gasolinensis politichensis e M. gasolinensis gasolinensis – variedade extremamente adaptável e resistente, com tropismo para qualquer tipo de H. sapiens.

Apesar de versátil, a M. gasolinensis é alvo de um importante elo da cadeia alimentar: a fêmea do H. sapiens, que – apesar de facilmente abatida pelo Machossaurus terrificus – se mostra absolutamente intolerante ao parasitismo promovido pela espécie rival. Essa peculiaridade pode ser a chave para o extermínio desses animais aparentemente inofensivos, mas que, em longo prazo, são capazes de dizimar um número incontável de H. sapiens incautos.

Machossaurus terrificus e Maryia gasolinensis não integram a atual lista de espécies em extinção. Injustamente, diga-se de passagem.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Dos Amores. Dos Dias.

"O amor nunca morre de morte natural.
Morre porque nós não sabemos reabastecer sua fonte.
Morre de cegueira e dos erros e das traições.
Morre de doença e das feridas;
morre de exaustão, das devastações, da falta de brilho."

(Anais Nin)

Soundtrack: Carla Bruni - Qualqu'un m'a a Dit



Ele nunca disse que me amava. Nunca me disse, e também nunca perguntei – não porque tivesse medo da resposta, mas porque instintivamente a conhecia e isso fazia de qualquer prova verbal uma desnecessária redundância, então cada uma daquelas pequenas banalidades diárias soava como amor inequívoco e explicitamente declarado. Como quando me puxava os cabelos de leve para em seguida afrouxar os dedos e escorregá-los pelo meu pescoço, era amor que havia naquele deslizar de dedos. Como quando surgia à porta e ali ficava parado, mudo, e no olhar havia um misto de admiração e desafio e obscenidade carinhosa, e aquilo tudo invariavelmente terminava entre arquejos e suores entrelaçados repousantes na exaustão lânguida das nossas bocas ainda coladas uma na outra. Ou, simplesmente, como quando dizia meu nome – pronunciado em passeios demorados por todas as oscilações de tons, e eu tinha a nítida sensação de ouvir seu coração bater mais doce em cada uma delas. Ele era inteiro um mundo de coisas não ditas que se diziam por si mesmas e eu aprendera a ler naquele silêncio claro e eloqüente, eu embora oposta e dizendo amor com olhos e boca, e corpo, e todo o resto e a todo tempo, e era como se, a cada vez dito, esse amor se superlativasse dentro de mim.

E não sei se foi intencional – se foi justamente a perfeita simbiose entre o seu silêncio e a minha capacidade de traduzi-lo que me fez mergulhar na negação. Mas, naquela tarde, quando ele surgiu à porta – e o rosto que me fitava já não era o mesmo, como para ele já não era a mesma a mulher de pé à sua frente – percebi que era chegada a hora. E dessa vez fui eu quem não disse nada, simplesmente esperei. Foi a minha vez de ficar ali parada, olhando. Apenas e interminavelmente olhando. Porque não havia mais nada a fazer, e eu soube disso no momento em que o ouvi balbuciar meu nome naquela meia-voz reticente, naquele fio de voz. Era outro o bater do coração. Então, pela primeira vez, ele não me pôde olhar nos olhos – e nesse exato instante eu soube que, na cabisbaixeza do olhar que ineditamente evitava o meu, havia um murmúrio dolorido de despedida.

domingo, 21 de setembro de 2008

Selos, Meme, Música...

Essa semana fui lembrada por seis blogueiros queridos.

Agradeço a Claudinha, Troll, Tyr Quentäle, Gisele e J. pelo Dardos - transcrevendo o que a Claudinha escreveu, com o Prêmio Dardos se reconhecem os valores que cada blogueiro mostra a cada dia e seu empenho em transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, que de alguma forma demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Muito obrigada aos cinco pela lembrança! Tenho que repassar pra mais 15 blogueiros - mas isso eu faço outro dia, que agora o tempo urge.

E agradeço também minha querida ex-Bruxa-e-atual-Senhora-Mirian pelo Biggest Heart - Mi, muito obrigada pelo coração. Pelos corações... e esse eu repasso pra todo mundo da minha lista. Todos tem coraçãozão, ora.

Respondendo ainda o meme da Tyr, fiz uma listinha das 7 músicas que estão sempre na minha playlist - 7 que acabaram virando 8, porque não consegui eliminar nenhuma na hora do empate técnico: Baba O'Riley (The Who); Something (George Harrison); Cry, Baby (Janis Joplin); Wot's... Uh, the Deal? (Pink Floyd); Don't Worry Baby (The Beach Boys); Wild Horses (The Rolling Stones); Simple Man (Lynyrd Skynyrd); e Time of the Seasons (Zombies).



Quem conhece e curte, é só dar um play que estão todas aí. Quem não conhece mas ficou curioso, idem. E VOCÊ, que ao invés de curioso ficou furioso com as minhas escolhas e me pergunta "hey, garota, qual é o seu problema, por que você não ouve música em português?", não leve essa coisa de colonização pelo Tio Sam tão a sério - relaxe aí o patriotismo musical e ouça também. Americanize-se a "little bit" e se divirta...

Repasso para Sunflower, Chantinon, Aline, Bill Falcão, Nathália, Iara e Taynar.


Beijo pra quem é de beijo, abraço pra quem é de abraço e uma semana deliciosa pra todo mundo!

sábado, 20 de setembro de 2008

Abstrato

Hoje sigo a pé,
Sem destino,
Por uma rua colorida de sol.

Ouço o badalar dos sinos
E as vozes dos meninos
Desenhados no papel...

Hoje minhas mãos tocam o céu
Para que pare o tempo,
E um cometa-criança
Possa brincar com o anel,
Roubado dentre os muitos de Saturno,
Sem que galopem os anos.

Hoje sou terra;
Ar...

Hoje tomo banho de mar
Na gota de chuva que virou oceano.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Absinto

"Talvez haja apenas um pecado capital: a impaciência.
Devido à impaciência, fomos expulsos do Paraíso;
devido à impaciência, não podemos voltar."

(F. Kafka)

Soundtrack: Beck - Chemtrails



Quero aquela dose de impaciência há tanto tempo relegada em nome de uma pretensa e discutível sobriedade. Pura, sem gelo. Amarga. Concentrada e envelhecida. Ácida, de uma acidez áspera e transgressora, dessas que inundam a garganta abruptamente sem lhe dar chance de recusa. Dessas que subvertem as boas maneiras e enxovalham as mesuras nascidas no ambiente duvidoso de uma serenidade já desbotada. Aquela dose, pura e sem gelo, aquela dose cujo sabor é o da minha boca hostil à constrangedora vulgaridade das palavras cuidadosamente pensadas. Então sente-se aí, e brinde, e beba comigo e não me estranhe a súbita vontade – que hoje também o dia nasceu estranho e é provável que sempre tenha sido assim e que sua verdade me tenha sido negada por estes olhos completamente bons, livres do filtro venenoso da fúria, e quem saberá dizer se estes olhos ainda são os mesmos que vermelhos e ligeiramente turvos me obscurecem o rosto. Sente-se, e beba. E veja, não é realmente estranho perceber que as coisas sempre foram como jamais ousaram ter sido?

E veja, não é realmente estranho? Esta abdicação súbita das incorrupções há pouco fervorosamente praticadas. Esta senescência das ingenuidades, estas nodosas incoerções, esta devastadora incongruência entre o real e o crido. Olhos completamente bons agora vermelhos e ligeiramente turvos por uma indiferença furtiva, que a indiferença usualmente se oculta sob a máscara das paixões pródigas. E compreenda, não é descrença ou embrutecimento ou sequer desesperança, é apenas e paradoxalmente um pouco mais de complacência para com as minhas imperfeições, e as suas, e as de tantos, então sente-se e brinde e beba comigo esta dose pura e sem gelo de impaciência tão necessária, num último ato de contrição.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Carta Para P.

Do que é palpável, embora intocável.

Soundtrack: U2 -
One



"Querida P.,

Esta noite sonhei que lhe fazia uma visita. Não me pergunte como cheguei até aí; o fato é que cheguei – e acredite, nunca imaginei que Lorena fosse assim tão perto!

Não me lembro se havia avisado... mas de alguma forma você já sabia, e me aguardava com a porta aberta. O dia era bonito, claro, de céu sem nuvens e aconchego morno. A casa cheirava a lavanda, e era macio caminhar, sobre o chão de tacos encerados, pelos espaços circundados por paredes azuis repletos de livros, papéis e claridade.

Em sonhos, você sabe, tudo é possível e, em se tratando dos meus, então... pasme: você tinha, além das duas cachorrinhas, cinco – isso mesmo, cinco – macaquinhos-de-cheiro que seu pai havia lhe levado de presente de Tucuruí, um deles grande, gordo, peludo, branco, com uma cara bem suspeita de cachorrinho maltês (e estou literalmente às gargalhadas lembrando desse tal bichinho de espécie duvidosa), cada um com um nome tirado daqueles romances que você adora, embora não tivesse nenhum Aureliano no meio... Todos moravam em um viveiro imenso, cheio de plantas e orquídeas (não sei se macaquinhos-de-cheiro comem orquídeas, mas o fato é que os seus eram “gentlemen” e cuidavam muito bem delas) e um deles, preto, tão pequeno que cabia na palma da mão, de vez em quando virava um gato...

E passamos a manhã (e sei que era manhã, embora não houvesse relógios para marcar o tempo) conversando sobre aquelas trivialidades que fazem especiais as conversas de amigos que se querem bem, entre brigadeiros de colher e sonhos de padaria, que a sua empregada chamada Tamires, linda, simpaticíssima e que passava os dias cantarolando Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald, havia ido comprar em uma bicicleta vermelha enfeitada com flores amarelas. E no fundo do saco de papel pardo que trouxera os doces havia um biscoito da sorte – e, embora eu não me lembre da mensagem, sei que era alguma coisa muito boa, porque nos olhamos, aos risos, e dissemos “éééééééé!”...

E assim foi o dia. Leve, leve, leve. Só não sei por onde andava o nosso B., que se recusou a dar o ar da graça nesse sonho maluco, é verdade, mas lindo. Ainda nos perguntamos, várias vezes, onde ele estaria, que não aparecia nunca – dizíamos “o sonho vai terminar e o danado não aparece”... Pena. Ele teria se divertido, tenho certeza. Devia estar fotografando flores, crianças ou outras coisas bonitas em algum outro sonho por aí...

Esses são os detalhes de que me lembro. Lembro ainda de que não houve uma despedida – simplesmente me vi, de uma hora para outra, dentro de um banheiro de avião que se abria não para o avião (afinal estamos falando de um sonho meu), mas para o meu quarto, onde eu encontrava a mim mesma dormindo! E então, calmamente, deitei ao meu lado e acordei – e cá estou eu, transcrevendo tudo isso pra você.

E nem sei mesmo se tudo isso aconteceu aí na sua Lorena. Talvez tenha se passado nesse lugar onde você tanto deseja estar para começar a existir... só sei que esse sonho me deu a certeza ainda mais certeza de que estamos sempre ao lado uma da outra, embora as geografias teimem em dizer o contrário. E de que a vida é mais doce e mais vida simplesmente por saber que você está por perto.

Amo você infinito.

Beijos, queijos, cafunés e brigadeiros,

F.

18 de dezembro de 2007, exatamente às 13:55h."


Amiga-metade, publicar essa carta, coisa tão nossa, aqui, quase um ano depois, foi um jeito de não me perder desse lugar onde existir é possível. Desse lugar porto-seguro que está lá desde que acreditemos nele. Obrigada por segurar a minha mão nesse vendaval que tem varrido minhas forças, por não me deixar cair nem desacreditar que isso tudo passa, por ler o meu silêncio e me acolher no seu abraço, você que a vida inteira sempre esteve tão próxima. Amo você.

domingo, 14 de setembro de 2008

Das Habilidades Precoces, Gênero-Relacionadas e Geneticamente Determinadas

Meninos.

Soundtrack: Peter, Bjorn and John - Young Folks




Transcrição de um breve diálogo passado no interior de um automóvel entre 12 e 13h de um dia deveras escaldante no trânsito caótico de uma capital do norte do país, entre os personagens por hora identificados como O Caozeiro e A Caozável, respectivamente.

O Caozeiro: Que som é esse?

A Caozável: Peter, Bjorn and John.


O Caozeiro: Não tem The Who?

A Caozável: Noup.

O Caozeiro: Cadê o Led?

A Caozável: Deixei em casa. Desde quando você ouve Led?

O Caozeiro: Desde sempre, ué.

A Caozável: Sempre é muito tempo, cara. E você nem existe há tanto tempo assim.

O Caozeiro: Hahaha. Não vi a graça.

Breve silêncio. Brevíssimo.

O Caozeiro: Por que não trouxe Who e Led?

A Caozável: Nada demais, só não lembrei. Pode mudar se quiser.

O Caozeiro: Tudo bem, deixa rolar o Peter Bjorhahuhohae.


Pausa reflexiva.


O Caozeiro: Não lembrou de trazer Who e Led?

A Caozável: Ninguém é perfeito.

O Caozeiro: A Análise é perfeita. ("Análise": codinome dado pelo Caozeiro a uma menininha, depois de descobrir que "analisar" significa "examinar detalhadamente, parte a parte")

A Caozável: A Análise ainda nem tem peito, guri.

O Caozeiro: Ela tem peito sim. Só que não dá pra comparar o peito dela com o seu. Você é muito mais velha que ela.

A Caozável: Ei, garotinho, aprende uma coisa básica. Não se diz pra uma mulher que ela é muito mais velha que outra; se diz que ela é mais experiente, mais madura, mais qualquer coisa que não seja “velha”.

O Caozeiro: Por que?

A Caozável: Eufemismo.

O Caozeiro: Que é eufeminismo?

A Caozável: EU-FE-MIS-MO. É quando a gente diz alguma coisa de um jeito sutil. Tipo trocar “velho” por “pessoa de idade”, “feio” por “simpático”, “gordo” por “forte” ou “fofinho” e por aí vai.

O Caozeiro: Se eu te chamar de pessoa de idade?

A Caozável: Aí não é eufemismo, é sacanagem.

O Caozeiro: Rá.

A Caozável: Humpf.

O Caozeiro: Viu o desenho que te deixei em cima da cama hoje de manhã?

A Caozável: Vi. Tá pronto?

O Caozeiro: Quase. Faltam uns retoques só.

A Caozável: Por que os olhos são tão grandes?

O Caozeiro: É um mangá. Tem que ser grande.

A Caozável: Sim, ok. É “saponeiz”, certo?

O Caozeiro: Certo.

A Caozável: “Saponeiz” tem olho puxado. Olhinho. Por que no mangá eles têm o olhão?

O Caozeiro: Que é que você entende de mangá?

A Caozável: O mesmo que entendo da plantação de nabos brancos do Afeganistão: nada. Por isso a pergunta.

O Caozeiro: Não sei. Mas nada a ver. Olha você: os seus olhos são puxados e são grandes.

A Caozável: Aff, agora sou olhuda e peituda.

O Caozeiro: Não disse isso. Disse que você é igual a um mangá.

A Caozável: Olhuda e peituda.

O Caozeiro: Tá, pode ser, também. Mas isso não é ruim. Não complique as coisas. Eu gosto de mangás. Aquele desenho parece com você. e você parece mesmo um mangá, mas as mulheres são bonitas nos mangás. E o desenho ficou bonito, né?

A Caozável: Né. Ficou bem bonito mesmo.

O Caozeiro: Viu? Mangá foi um EU-FE-MIS-MO.

A Caozável: ?

O Caozeiro: Eu quis dizer que você é muito bonita.

A Caozável: eu. O Caozeiro: meu irmão, 12 anos, 7ª série, desenhista, aprendiz de quadrinhista, projeto de web master, filho caçula, único rebento varão da família e indiscutivelmente o mais talentoso da estirpe Brito – nem saiu dos cueiros e já mostra a perigosa e inata habilidade de amolecer indivíduos nascidos sob o determinismo dos cromossomos XX.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Miados, Pétalas e Outros Sorrisos

Um dia daqueles.

Soundtrack: Modest Mouse - Missed the Boat







Seis e quinze.

Mais quinze minutinhos extra de quase-sono, que o quentinho da cama a essa hora da manhã tem visgo. Um pulo rápido para vencer a inércia, banho frio para espantar a preguiça, dentes escovados, floss, hidratante, tratamento de pele, perfume, filtro solar, rímel, gloss, a leveza florida do vestido cobrindo o corpo que aos poucos entende que o dia começou, cabelo úmido e solto riscando no ar um cheiro bom. Iogurte light de morango, procuro as chaves, não as encontro, procuro as chaves, as encontro na ignição. A benção, mãe, “Deus te abençoe”. Partida. Trânsito.

Calor – que o sol nunca se esquece a que veio nessa cidade. Sinal vermelho, aberto para o menino vendendo balas de goma promoção-leva-quatro-paga-três, Lynard Skynard, be a simple kind of man abafando a histeria das buzinas. Sinal verde, aberto para o trânsito que não anda, não a essa hora; a essa hora tem visgo o asfalto quente lavado de gasolina e pressa. Trabalho. Jaleco branco com cheiro de amaciante de roupas, bom dia Nélio, bom dia Sônia, bom dia Dagmar. Hipertensão. Diabetes. Lúpus. Verminose, esse menino não come nada, queria que a senhora passasse aí uma vitamina. Gravidez – ela que já tem um piá e metade dos meus anos, eu que mal entrei nos trinta. Bebês, muitos bebês. Ácido fólico, omeprazol, pamoato de pirantel, captopril, salbutamol, prednisona, praziquantel, vitamina C, complexo B, amoxacilina 500mg de oito em oito horas sem pular dia nem dose ou os bichinhos não morrem. Exame de sangue, fezes, urina, encaminhamento para o especialista, telefonema para o Doutor Fulano barganhando uma ultra-sonografia na camaradagem porque o neném não pode esperar, vai nascer no mês que vem. Almoço.

Visitas domiciliares e tomo café passado na hora com bolinhos-de-chuva na casa da senhora idosa que cuida dos netos e do marido também idoso que sofreu um AVC no mês passado, e que ainda assim sorri e me chama de menina. Outra casa e ganho um abraço e uma flor imaginária, e bebo água gelada, e como jambos frescos cuja brancura macia me adoça a boca e mais ainda a alma – que a pobreza é coisa tão pequena quando o coração se apraz em dividir. E parto levando a flor que uma mãozinha morena me ajeitou com capricho nos cabelos para que eu ficasse bonita. Trânsito. E a chuva chegando, se insinuando entre as folhas das mangueiras e virando água por todos os lados nessa cidade que se banha todas as tardes.

Consultório médico. A paciente: eu. A impaciente: idem. Ainda bem que o tempo voa. Trânsito.

Pit stop no supermercado mais próximo. Missão: comprar ração para o gato branco. Um dia descubro o motivo de o saco de ração invariavelmente terminar nesses dias de apenas vinte horas.

Curso preparatório. Questões freqüentes em provas de residência. Vasculites, colecistite, pericardite, hepatite, meningite, episclerite, artrite, ite, ite, ite, os olhos fechando, os olhos abrindo, ite, ite, ite, coca-cola zero e sanduíche de peru. Ite, ite, ite. Trânsito.

Casa. Comida. Roupa lavada. O gato branco se aproximando naquele passo ronronante de gato, lhe dou comida e ele me dá um miado de satisfação e desliza o corpo por entre as minhas pernas, feliz. Banho frio para espantar o cansaço, dentes escovados, floss, hidratante, tratamento de pele, cara limpa, cabelo úmido e solto riscando no ar um cheiro bom. E penso em como seria perfeito poder dormir com as janelas abertas nessa cidade onde o sol nunca esquece a que veio e que se banha todas as tardes, e observo com carinho a flor imaginária repousada em seu vaso tão imaginário quanto.

E nem sei se foi a flor, ou o abraço, ou a mãozinha morena, ou a senhora idosa com seus netos e seu marido também idoso, ou a gentileza do Doutor Fulano, ou o gosto dos jambos e dos bolinhos-de-chuva, ou a carícia ronronante do gato branco, ou se foi ou justamente o que não percebi que me atingiu em cheio e me trespassou o peito como o cheiro das cores dessa cidade... o que sei é que foi um dia bom, boa noite, a benção, mãe, “Deus te abençoe” e alguns minutinhos extra de quase-sono, que o quentinho da cama a essa hora da noite tem visgo.

Blog no ar outra vez, galera. E tem atualização lá no Espasmos, com direito a votação. Não poderíamos ficar de fora desse clima de eleições, né? Beijos!