"Capineiro de meu pai
não me cortes meus cabelos.
Minha mãe me penteou;
minha madrasta me enterrou,
pelo figo da figueira
não me cortes meus cabelos.
Minha mãe me penteou;
minha madrasta me enterrou,
pelo figo da figueira
que o passarim beslicou."
(Belchior - Aguapé)
Tenho um bonsai de figo.
A verdade é que, nem sempre, o bonsai me pertenceu; foi,
originalmente, um presente dado por mim a meu ex-marido e que ele, quando nos
separamos, por motivos que não vem ao caso, não levou consigo. A separação não
foi nada amigável, mas seria uma insensatez cruel deixar a plantinha morrer.
Fiquei com ela, no início mais por obrigação do que por opção, e passei e
cuidá-la com a disciplina de quem cuida de uma criança pequena – eu que, mais
do que desacostumada a vasos, terra e outras peculiaridades do reino vegetal,
nunca havia cogitado ter uma planta.
O ex-marido se foi, o bonsai ficou. Acomodei-o num canto
iluminado e arejado próximo ao que restara de uma begônia tão presente de
aniversário quanto e que eu, apesar dos esforços, não conseguira salvar (tempos
depois imaginei que a visão de uma begônia agonizante poderia aterrorizar um
pouco o bonsaizinho – mas, como ele continuou viçoso mesmo quando sua
companheira, dali a poucos dias, morreu definitivamente, não vi razão para
mudá-lo de lugar). Dizem que o bonsai é uma planta de um dono só. Tive, por certo
período, receio de que ele, com saudades do antigo proprietário, me rejeitasse,
e virasse em poucas semanas uma arvorezinha seca. Não virou. Despreocupei-me.
Confesso: os primeiros dias não foram nada fáceis. Havia
mesmo certa animosidade entre nós – e, para quem se pergunta como pode existir
animosidade entre um ser humano e uma planta eu digo: plantas são seres mais
sensíveis do que certas pessoas e percebem nosso estado de espírito. Mais do
que isso, demonstram claramente o seu próprio. Nada que eu fazia lhe agradava.
Se lhe oferecia menos água, era pouco; se lhe oferecia mais, era muito. Quando
a deixava ao sol, era muito quente – e se a levava para dentro de casa era
muito escuro, frio, sufocante para uma planta. Fui até a floricultura onde o
havia encontrado, comprei o melhor adubo, terra especial, aprendi tudo sobre bonsais
de figo: que gostam da vaporização da copa e de ambientes ventilados e
arejados, que o sol reduz a folhagem embora os faça crescer mais vigorosamente,
que a sombra aumenta o tamanho das folhas e que bonsais de figo não curtem
temperaturas muito frias. Que existem figos “femininos” e “masculinos”, que o
figo é considerado um fruto sagrado pelos judeus e que na Birmânia e no Ceilão também
é venerada com árvore religiosa; que, na Índia, a figueira é a árvore sagrada
sob cuja sombra Buda se acomodava para escrever seus manuscritos. Que os
astecas e maias usavam a casca do fícus para fazer papel e os gregos e romanos
como medicamento, que existem centenas de espécies de fícus e que meu bonsai se
chama, cientificamente, Ficus benjamina.
Estabeleci rituais de cuidado seguidos à risca quase com a disciplina e
espiritualidade de um mestre zen. Independente do que eu fizesse, porém, as
folhas continuavam meio encolhidas, com jeito de ressabiadas, e o que dizer
daquele verde? Áspero, mal-humorado, com cara de quem estava achando tudo muito
monótono. Aquele verde não tinha nenhum brilho nos olhos. Definitivamente, eu
não lhe apetecia.
O que veio a seguir aconteceu em uma noite quente de quase
verão. Havia uma brisa fresca e, apesar do calor, a noite era agradável; meu filho, que ainda contava poucos meses de nascimento, dormia profundamente no berço, no mesmo quarto onde minha mãe assistia a um programa de tevê. Decidi
passear pelo gramado e acabei me sentando sob uma laranjeira, ao lado de onde
havia deixado, horas antes, meu bonsai de figo. Comecei a pensar na vida. E, subitamente, me
sentia menina demais para compreender que havia ainda uma vida inteira pela
frente. Então, naquela noite – que era, como meus pensamentos, morna e
imediata, e que parecia tão eterna e estática como se fosse sempre ser noite
escura embora eu soubesse que, após ligeira brevidade, seria manhã – sentei-me
com os joelhos cerrados entre os braços e precisei me esforçar para conter a
primeira lágrima. Eu sabia que minha pequenina figueira estava ali. Então estiquei
uma mão em direção a ela e, ainda com os olhos na direção do nada, disse com
uma cumplicidade tanta que até me surpreendeu:
- Você sabe. Eu sei que você sabe o que eu estou sentindo.
Continuei a acariciá-la – até que meus dedos esbarraram em
uma forma arredondada, de uma textura diferente e suave. Não me contive: saltei
em sua direção e estava ali, o primeiro fruto do meu bonsai de figo! E era, eu
tinha certeza, um presente seu para mim. Enquanto minha pele era acariciada por
suas folhas, eu me entregava à comunhão silenciosa com aquela arvorezinha. Eu a
ignorara durante tanto tempo. Tive raiva dela, até. Mas, naqueles dias
tumultuados, eu sabia, agora eu sabia, ela também cuidara de mim, a princípio
mais por obrigação do que por opção, como eu fizera com ela quando seu legítimo
dono se foi. Mas ela também aprendera a gostar de mim. Havia amor, afinal.
Foi, sem dúvida, um instante de felicidade.
Um comentário:
INCRÍVEL <3
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