Imagem: weheartit |
Quando aquela carta chegou, sem qualquer identificação, o primeiro
pensamento foi largá-la junto à confusão de papéis inúteis sobre a mesa.
Apanhou o envelope em branco – fechado, mas não lacrado – e o examinou contra a
luz: viu apenas um pequenino retângulo de papel que, à primeira vista, parecia igualmente
em branco. Ao contrário das demais correspondências, sempre entregues pelo
carteiro, esta havia sido passada por baixo da porta, nas primeiras horas da
manhã. Cogitou jogá-la fora, a curiosidade foi maior: abriu o envelope
cuidadosamente, retirou o retângulo dobrado ao meio e abriu. Nenhuma palavra;
apenas um perfume delicado evocando alguma coisa conhecida e, há muito tempo,
esquecida.
Fechou os olhos na tentativa de buscar dentro de si o nome daquela
lembrança e, quando tornou a abri-los, estava exultante – o cheiro era idêntico
ao de uma boneca que tivera na infância, a boneca favorita, sem um olho e quase
sem cabelos, com uma costura torta emendando a cabeça e o corpo. Há quanto
tempo não se lembrava dela! A mãe acabou jogando-a fora porque havia ficado
muito velha e lhe comprara uma boneca nova, que ficara ignorada em um canto do
quarto; sua amiga, sua companheira, mesmo, era a outra. Betina, era o nome
dela. O papel, sem dúvida, tinha o cheiro da Betina, o mesmo cheirinho de pano,
de suor de criança e da água-de-colônia que a avó usava, e que ficava
impregnado na boneca quando a velhinha tomava para si o trabalho de costurá-la.
Sorriu encantada com a lembrança e com saudades da avó, que partira há alguns
anos, da Betina e até da boneca substituta, dada de presente a uma sobrinha
muitos anos depois.
Fechou os olhos novamente, aproximou o retângulo de papel
do rosto e aspirou novamente aquele cheiro – viu novamente a avó sentada na
cadeirinha de balanço com o cesto de costura ao lado, a mãe assistindo tevê, o
pai tomando um café e lendo um livro antes de deitar. Viu novamente a avó, indo
até o seu quarto para lhe devolver a Betina, nova em folha, na hora de dormir,
junto com um beijo de boa noite. Abriu os olhos, impressionada. Que coisa
esquisita! A carta seria para ela, sem
dúvida; não havia de ter ido parar em suas mãos por engano. Devolveu o papel ao
envelope e guardou a cartinha em uma pequena caixa em forma de coração que, até
então, existia sem uso no interior de uma gaveta. Ainda com um sorriso no
rosto, voltou para os afazeres do dia. E, por algum tempo, não pensou mais no
assunto.
A segunda carta chegou dez dias depois. Tinha o mesmo jeito da outra – um
envelope branco e bem cuidado, sem remetente ou destinatário, igualmente
esgueirada por sob a porta num início de manhã. Tomou-o nas mãos e, ao abri-lo,
se espalhou pela sala um cheiro azulado, morno e arenoso, prontamente
reconhecido: o cheiro da primeira vez em que vira o mar. Dessa vez, conseguiu
sentir até a carícia da água nos pés e um sopro suave de brisa a alisar seus
cabelos. Uma após outra, mais cartas foram chegando. Sempre do mesmo jeito. Uma
delas tinha o cheiro do primeiro dia de aula. Outra, o do seu aniversário de
doze anos. Outra, ainda, o do último Natal. E outras, surpreendentemente,
tinham cheiro de coisas que não têm cheiro, como de banho de chuva, do primeiro
beijo e de procurar desenhos nas estrelas. Em pouco tempo, a caixa em forma de coração
estava tão cheia que começava se deformar; as memórias se acumulavam, e tanto
tempo haviam estado misturadas entre si que o cheiro desta era também o cheiro
daquela.
Coincidentemente, quando a caixa ficou cheia, as cartas cessaram – um período muito triste, pois a destinatária se havia apegado
tanto a recolher suas lembranças que o presente se tornara irrelevante:
simplesmente, não sabia mais o que fazer com ele. Recordou-se do dia em que
chegara a primeira carta, do quanto a vida era ágil e o passado, fugaz. Há
tanto tempo não se lembrava mais de tudo aquilo; espantoso não haver percebido
o quanto lhe fazia falta, como espantosa era a absoluta insignificância do que
não dizia respeito ao conteúdo de sua caixa. Naquela noite, dormiu abraçada a
ela – como se, assim, o cheiro de todas aquelas memórias pudesse penetrar definitivamente
em suas narinas, e definitivamente alcançar cérebro e coração para jamais
tornar a se apagar. Quando acordou, tinha no pensamento, além das memórias, a
imagem da mulher que vivia solitária em um apartamento a dois andares do seu –
se esbarravam, volta e meia, no elevador, mas nunca haviam conversado. Na
verdade, nunca prestara mesmo muita atenção na vizinha; mas, naquele momento,
enquanto se lembrava dela, via seus olhos melancólicos perdidos em meio à
confusão dos dias que se ocupavam em nascer e morrer sem que, de fato, sua
existência significasse alguma coisa. Compreendeu que as cartas já não lhe
pertenciam. Com o coração partido compreendeu o que precisava fazer.
Abriu a caixa, retirou uma das cartinhas, sentiu seu cheiro – longínquo,
mas ainda inebriante – pela última vez. Fechou o envelope sem lacrar e, ainda
de pijamas, tomou o elevador, apertou o cinco e, segundos depois, estava diante
do apartamento da vizinha solitária. Sem hesitar, deslizou o envelope por sob a
porta e partiu. Em breve, a caixa em forma de coração ficaria vazia, mas isso
já não lhe importava; por algum motivo, estava feliz. Tomou novamente o
elevador, apertou o sete e, em casa outra vez, tornou a adormecer. A poucos
metros dali, um par de olhos melancólicos, surpreso, também se fechava,
admirando, por sob as pálpebras, a inesperada lembrança misteriosamente resgatada
pelo terno cheiro de uma certa saudade.
2 comentários:
Olá Flavia:
Fiquei emocionada ao ler. Muito lindo seu texto.
Obrigada por compartilhar tanta beleza.
Beijinhos,
Léah
Que coisa linda! Um autêntico Flávia.
A boa leitura é uma nave espacial que, quando conduzida por ti, pegamos carona. Você nos convida e embarcamos. Tens o teu destino, mas, generosa, nos entrega a cada um antes, com uma gentileza inexplicável, em nossas próprias paradas, não apenas um lugar de memórias e experiências, mas o lugar onde elas repousam na forma como deveriam, de fato, ter ocorrido. Sonho.
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