Cheguei, inclusive, a pensar que
fosse algum tipo de brincadeira. Na verdade, cheguei a ter certeza – porque,
afinal, quem, em sã consciência, procura um médico para pedir uma coisa dessas?
Mas olhei para ele, e ele estava muito sério, sentado ali à minha frente
batendo as unhas sobre a mesa e esperando que eu lhe desse uma resposta, que
substituí pela única palavra que fui capaz de pronunciar após ouvir seu
insólito pedido:
- Como?
- Quero um encaminhamento para um
médico especialista em doença.
Ok. Um encaminhamento para um
médico especialista em doenças. Certo. E não era piada.
- Ok. Certo. De que doença o
senhor está falando?
- Não sei. Doença. Qualquer uma.
- É que, senhor, o senhor precisa
me dizer de que doença sofre para que eu saiba para que médico preciso lhe
encaminhar.
- Eu não sei de que doença sofro.
Por isso preciso de um especialista em doença: para que ele descubra o que é
que eu tenho.
Sempre tive tato para lidar com
toda sorte de pedidos, talvez mais bom humor até do que tato, e era apenas o
comecinho da manhã – além de bom humor e tato eu tinha ainda as vantagens de
ter tido uma ótima noite de sono e de ainda sentir, fresquinho na minha
bochecha esquerda, o beijo de bom-dia do meu filhote. Então, um encaminhamento
para um médico especialista em doenças era algo estranho, enigmático, até certo
ponto depreciativo – afinal de contas, que tipo de médica sou eu se meus
pacientes precisam que eu lhes encaminhe para que outro profissional que lhes
descubra e trate a moléstia? – mas, ok, essas coisas a gente supera. Trabalho é
trabalho.
- Mas afinal, o que é que o
senhor sente? O senhor tem alguma dor, alguma coisa? Se o senhor acredita que
está doente a ponto de precisar de um “especialista em doença”, deve estar
sentindo alguma coisa. Se me disser o que é, quem sabe eu possa ajudar.
- Não, não sinto nada, quer
dizer, né? Eu sinto assim, de vez em quando uma comichão... de vez em quando
uma falta de ar... aí quando vem a falta de ar eu não consigo dormir direito,
fico me batendo na cama de um lado para o outro. Fico meio sofrido.
- E quando isso acontece? Todas
as noites?
- Não, não. Só quando eu como
muito antes de deitar.
Continuei olhando para ele.
Àquela altura, eu é que estava batendo as unhas da mão direita sobre a mesa – a
mão esquerda permanecia apoiada no queixo (e agora, pensando bem, não sei bem
certo se a mão estava apoiada no queixo ou se o queixo é que se apoiava obstinadamente
sobre minha mão fechada para se resguardar de cair vertiginosamente e rolar
pelo chão), toda a parte que me cabe no latifúndio da criatividade vasculhando
as profundezas da minha mente em busca de uma frase de efeito, uma pergunta
retórica, um conselho sábio, qualquer coisa que não fosse a ridícula
continuidade que dei àquela conversa.
- Sei...
“Sei”. Devo ser uma médica muito
ruim, mesmo.
- E outras coisas? Dor de cabeça,
“batedeira” no peito, tontura?
- Nada.
Empaquei. E éramos dois batendo
as unhas sobre a mesa.
- A senhora pode me encaminhar
para um clínico geral, não tem problema.
- É que, bem... o clínico geral
sou eu, senhor.
Decidi encaminhá-lo ao
psiquiatra. Afinal, ele não queria um especialista em doenças? Eu o enviaria a
alguém que poderia decodificar a mensagem subliminar daquele pedido, no mínimo,
esquisito. Acontece que, sabe-se lá porque, eu me sentia constrangida em
mandá-lo ao psiquiatra porque sentia que havia algo de muito lúcido em toda
aquela falta de lógica. Decidi baixar a guarda, “tirar o jaleco” e descontrair.
- Seu Fulano, olha, eu entendo
que o senhor esteja preocupado com a sua doença, quer dizer, com a sua possível
doença. Mas, ao invés de sair por aí procurando coisas no escuro, por que é que
a gente não conversa um pouco mais, o senhor me conta mais sobre a sua rotina,
a gente vê o que o senhor precisa, vê aí uns exames se for o caso. O senhor não
tem necessariamente que procurar um especialista, até porque, até prova em
contrário, pode ser que nem precise de um. Entende?
- E se eu tiver algum problema de
próstata?
- Aí eu solicito um exame de
próstata e, se estiver alterado, eu o encaminho imediatamente ao especialista.
- E se eu tiver um problema no
coração?
- Vou saber se é o caso assim que
eu examinar seu coração. E, se for o caso, e se eu não tiver condições de
resolver, encaminho o senhor ao especialista sem fazer objeção.
- Não, sem injeção. Por favor,
injeção eu não gosto.
- Não, não “injeção”. “Objeção”.
- “Objeção” é grave?
- Na verdade, eu quis dizer que,
caso encontre alguma coisa, qualquer coisa, que sugira que eu não poderei
tratá-lo sem que isso represente risco para a sua melhora, não criarei nenhum
obstáculo para encaminhá-lo a outro médico.
- Hum. Entendi. Então a senhora
também é especialista em doença, não é?
- De certa forma, sim. Quer
dizer, não existe um médico que saia da faculdade especialista em outra coisa,
entende? Um médico está para doença assim como o Neymar está para a seleção
brasileira de futebol.
- Sei...
Eu havia vencido? Será? Ele ainda
me olhava meio desconfiado.
- É que a senhora é escritora,
não?
Então era esse o problema? Toda
aquela insistência em ser encaminhado para um “especialista em doenças” se
devia ao fato de eu ser escritora? Não pude deixar de respirar fundo (de
surpresa, de alívio, de compreensão, de magnanimidade diante de uma hesitação
que, confesso, eu também teria se tivesse lido, uma vez que fosse, minha coluna
no jornal) e de agradecer mentalmente porque a implicância não era com o meu
CRM, mas com a minha identidade (não tão) secreta.
- E daí? O Ronald Reagan era ator
de filme de faroeste e foi presidente dos Estados Unidos.
- Aquele, da estagiária?
- Não, esse aí era o Clinton.
Bom, esquece. Não tem importância. Vamos fazer uns exames?
- Opa, a senhora é que manda.
Conversamos um algo mais, o
examinei, solicitei os exames necessários e, ao fim da consulta, ele se
despediu visivelmente satisfeito e aliviado. Ah, aquelas coisas da cabeça. Ah,
o medo do grave, do inexorável, da fragilidade. Somos sempre levados a
acreditar que tudo é pior do que parece. Somos criados com a concepção de que o
irremediável chega sem avisar e alimentamos pequenas doses diárias de hipocondria
porque nos esquecemos de nos perceber. Ignoramos o diálogo incessante e fecundo
com nosso próprio corpo. Com a nossa humanidade. E eu estava imersa nessas
elucubrações quando ouvi o ruído manso da porta se abrindo outra vez, muito
lentamente.
- Doutora, só mais uma coisa.
- Claro. Pode dizer. Do que o
senhor precisa?
- A senhora pode me dar um
autógrafo?
4 comentários:
Manda ele pro House :)
Adorei, que barato! kkkkk... Jesus que paciente era esse? Nunca me apareceu um desses assim comigo não, =O
Beijos, Fernanda.
Hahahahaha, até imaginei a resposta do HOUSE pra um paciente falando isso. Seria certamente uma lição de sarcasmo...rs.
Adorei o causo, deu até uma gastura aqui junto com o cidadão. Ainda bem q vc tem toooda a paciencia.
Saudades. Saudades, ainda.
Bjos, mana.
Fláwer,
Que coisa! Acostumado a que estava a vir aqui para textos densos, daqueles que me faziam mergulhar imensamente em mim (e no outrem) através de suas palavras, qual foi o que de leveza, risada, bom humor (aquele inexorável!) fui surpreendido (para o bem!). Ao final, por entre o sorriso aberto no rosto, não pude deixar de exclamar: "olha só, onde já se viu", que lá em Minas quer dizer: "não é que essa moça escreve bem, sô!".
Beijos, com carinho!
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