terça-feira, 22 de setembro de 2009

Lista de Compras

"Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente
pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou
de doer, embora lateje louca nos dias de chuva."

C. F. Abreu


Soundtrack: Anna Nalick - Wreck of the Day




Eu sei; não me omiti de mim nas vezes tantas em que deveria tê-lo feito, sempre fui demais obsessiva em amealhar verdades invasoras esculpidas caoticamente sem qualquer critério ou estratégia. Tenho sido cruel comigo. Tenho medido forças com minha sensatez. Não quero mais essa idéia estranha de realidade interposta entre as cores da casa, preciso de um café. Amargo, para adocicar o destino do dia neste copo que me chega macio à boca. Preciso de uma vontade disparatada que perca no beco sem saída velho conhecido as cópias das minhas chaves. Música interior. Desconjunções. Desobrigações. Desfaçatezes, des, des, des; desisti dessa coisa de fazer sentido. Destinos, onde quer que estejam, não tenham pressa: durmam tranqüilos até as dez. Um bunker. Lá fora, a chuva não se decide. Aqui dentro, relógio, tic-tac-tic-tac-tic-tac escorrendo pelas paredes, mais um café, por favor, e um pouco de água tônica, e aquele desejo antigo que eu deixei por aí nem sei se debaixo da cama ou se dentro do armário, enrolado em alguma roupa velha, mas esse armário, esse aí, sim, esse deixe como está: fechado. É melhor assim. Não é bom mexer com aquilo que, após tanto tempo transtornado com os olhos abertos no escuro, finalmente, e ainda com a testa suada, adormeceu.

Preciso ligeiramente desorganizar a minha vida.


domingo, 13 de setembro de 2009

Aquele Dia em Setembro

"Quero te explicar isso, te passar este quarto imóvel com
tudo dentro e nenhuma cidade fora com redes de parentela.
Aqui tenho maquininhas de me distrair, tv de cabeceira,
fitas magnéticas, cartões postais, cadernos de tamanhos variados,
alicate de unhas, dois pirex e outras mais. Não tem nada lá fora
e minha cabeça fala sozinha, assim, com movimento pendular
de aparecer e desaparecer. Guarde bem este quarto parado,
com maquininhas, cabeça e pêndulo no coração.Fiz uma penteadeira
com Bogart e Bacall, très chic. Pronto, acabei esse assunto
de quartinho cultural, mas guarde bem – para mais tarde.
Fica contando ponto."


Ana Cristina César - Luvas de Pelica

Soundtrack: Aqualung - Strange and Beautiful





Não é que eu precise desesperadamente da sua presença, não é isso. Mas é que eu abri a porta do quarto e junto com ela se abriu uma coisa estranha dentro de mim, meio como uma idéia manca, manca e amputada, e eu senti a sua falta ali, naquele vazio recém descoberto. Porque a vida anda, ah, a vida anda; mas às vezes tropeça nas próprias pernas e se aprisiona trôpega nos retornos, ou às vezes se assusta e estanca para respirar ou, às vezes, simplesmente se cansa e se pergunta afinal, o que é que eu estou fazendo. A vida é mesmo assim, esquisita.

A vida é mesmo assim, eu não precisando da sua presença e a sua presença aqui, passeante. Insistente. E, daquilo que apaguei sem querer da minha lista imaginária de pequenas omissões, o que mais me sufocou foi ter dito foi “vai” quando você plantou seus olhos turvos de dúvidas sobre os meus lábios trêmulos, você sabia, você sabe, os meus lábios sempre tremem quando desacreditam do que eu digo. Então era “vai”, mas era “fica”. Ficou essa coisa que ainda não reconheço e que se parece tanto com solidão embora não seja pois, sim, é algo que pesa e respira e projeta sua sombra nas paredes e, seja lá o que for, me faz companhia, você ria, lembra? Você ria da minha imprudência em dizer que gostava de ficar só. Imprudente. Quem sabe seja sina minha esse imaginário ranger de dentes mastigando o real significado do que minha voz pronuncia, minha voz sempre teve gosto de inversões.

Tenho uma nova idéia a respeito de lucidez.


sábado, 5 de setembro de 2009

Entre Tantas, Uma História

Do que existe, e do que não se vê.

Soundtrack: Suzanne Vega - Luka


Ao me ouvir chamá-lo, o menino de sete anos abriu a porta do consultório feito uma ventania e se atirou no meu pescoço, “oi, tia”. Estava mais corado e bem mais desenvolto que na ultima consulta. Contou-me animado a respeito da escola nova; mostrou com orgulho a ponta de um dentinho permanente rasgando a gengiva, diminuindo o perímetro da janelinha sobre a qual eu brincara quando nos conhecemos. Foi essa a quarta vez que vi A.; na terceira eu lhe havia solicitado uns exames de rotina e, na segunda, ele comparecera para realizar uma lavagem de ouvido.

O tio de A. o levara até mim porque o menino, além de queixar-se de dor nos ouvidos, parecia ter um certo grau de hipoacusia – era preciso que o chamassem várias vezes até que ele atendesse aos comandos e, na casa dos avós, onde ele passara a morar desde que a mãe perdera sua guarda, os familiares, atentos, perceberam que o que parecia teimosia ou distração poderia, ao invés de algo puramente comportamental, ter uma causa orgânica. A palidez de A. me impressionou tanto quanto seu silêncio; segundo o tio, ele sempre fora uma criança quieta, mas, para mim, acostumada que sou com crianças de todas as idades e classes sociais, aquela inatividade toda era mais do que uma questão de temperamento – certamente havia por trás algo que ia muito além da dor física ou da contenção de travessuras infantis. A. não me olhava nos olhos, e respondia minhas perguntas com gestos e acenos de cabeça. O exame físico me deixou assustada: alguns hematomas e cicatrizes pelo corpo, e uma quantidade de cerúmen nos condutos auditivos que eu jamais havia visto sequer em ouvidos de adultos. Fiz a prescrição do medicamento a ser usado durante a semana, marquei a lavagem para dali a cinco dias e fui pra casa com aquilo no pensamento.

O que encontrei durante o procedimento nos ouvidos de A. me deixou chocada. Era realmente uma quantidade inimaginável de cerúmen, mas não apenas isso: ele tinha pequenos fragmentos de plástico e papel em ambos os condutos auditivos. Para quem não sabe, a lavagem otológica é realizada com soro fisiológico aquecido – ou seja, a temperatura do líquido deve ser rigorosamente monitorada a fim de retirar o cerúmen sem provocar queimaduras; é praticamente impossível um paciente não esboçar reações caso ela esteja ao menos ligeiramente acima do tolerável, lembrando que o epitélio do ouvido interno é extremamente sensível a variações térmicas. Apesar disso, A. não mexeu sequer um músculo da face. Cheguei a pensar que a indiferença dele se devesse a algum provável problema neurológico, o que justificaria o comportamento quase glacial mas, ao ser indagado se o líquido estava quente demais, ele respondeu “sim”.

- E porque você não disse nada?

Ele baixou a cabeça e pareceu receoso de responder alguma coisa. Por fim, balbuciou “eu posso?”, e isso me desnorteou. Pedi ao tio de A. que me dissesse afinal o que era que estava acontecendo ou eu teria de chamar o Conselho Tutelar; o rapaz, então, contou que o menino fora retirado do convívio com a família por ser vítima de abusos constantes por parte do padrasto e que, muitas vezes, era espancado apenas por ter feito alguma pergunta ou mínima queixa. Nas últimas semanas, A. levava surras constantes porque não atendia aos chamados, o que era classificado como rebeldia e desobediência pelo agressor – e isso causara no menino um pavor que ele transferia inconscientemente aos outros adultos de seu convívio: A. não se queixava para não ser agredido, mesmo que se encontrasse no limite da dor física ou psicológica. As feridas emocionais de A. eram tão profundas que anestesiavam sua capacidade de expressar reações comuns às outras crianças.

Há 5 meses A. é meu paciente. Hoje, o garoto é uma criança diametralmente oposta à de antes: brinca, tagarela e o mais importante, se sente seguro e amado por aqueles que assumiram a responsabilidade de cuidá-lo. O final feliz da história de A., no entanto, é exceção – a regra continua a ser a existência dolorosa e anônima de um número incontável de crianças vítimas de toda sorte de abusos físicos e psicoafetivos. Tão frágil quanto essas pequenas vítimas é a efetividade com que é combatida a violência infantil no país; apesar de patente, as estatísticas relacionadas ao assunto estão muito aquém do real. A distorção no registro desses números está diretamente relacionada ao velho conceito, ainda em voga, de que é melhor fechar os olhos para o que acontece na casa do vizinho e fazer de conta que F. realmente quebrou o braço porque tropeçou no carrinho e caiu da escada, ou que os hematomas nos braços e pernas de N. surgiram de um tombo de bicicleta, ou que foi o próprio A. quem picou os pedaços de plástico e os inseriu dentro dos ouvidos. É mais fácil, é mais confortável acreditar que o que não se vê, não existe. Só que violência infantil existe, e não é prerrogativa apenas de quem a executa com as próprias mãos: é de quem silencia diante dela também.


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A Saga do Peixe Frito

**Texto publicado originalmente no Espasmos de Riso Descontrolado, blog de humor escrito em parceria com as "comparsas" Anne e Mila, trazido hoje para cá com algumas pequenas modificações. Anne e Mila, saudades!**


Alguém aí conhece outro alguém traumatizado com peixe frito?

Caso sua resposta seja negativa, muito prazer, Flávia. A origem do drama vem de longa data: no auge dos meus singelos nove anos, quase fui brutalmente assassinada por uma posta (eu disse Posta) de peixe frito. Era domingo e a família estava toda reunida em um restaurante lotadérrimo. E eu era uma garotinha fresca: sempre tive aversão a tocar a comida com os dedos, o que significa que até mesmo o peixe era cuidadosamente destrinchado com garfo e faca (uma prévia das minhas habilidades com o bisturi). As reuniões da minha família nunca foram exatamente um mar de tranqüilidade: silogisticamente, levando em consideração que cada um de nós, Amaral que se preze, vale por seis, e de que à época éramos uma grande população completamente obstinada em congregar todos os ramos vivos da nossa vasta árvore genealógica em quaisquer eventos familiares – fossem estes almoços, batizados, formaturas, aniversários ou hospitalizações por diarréia – é fácil compreender porque, em todas as ocasiões, havia sempre uma situação propícia para a instalação do caos. Foi em meio à barulheira de vozes e talheres que senti aquele troço, que mais parecia um vergalhão de aço, estacionar na minha garganta. Esbugalhei os olhos e, com as mãos agarradas ao pescoço, tentei me fazer entender em meio à confusão.

- Gá... gá... gáááá... aa...

- Fala, minha filha. O que foi? – e mamãe continuava distraída com a história de não-sei-quem-fazendo-não-sei-quê-não-sei-onde que meu tio animado, contava entre uma e outra garfada generosa de moqueca com arroz.

- Gáááááááá...

- O que foi, meu amor? Quer mais um golinho de refrigerante, quer?

- Gáááááááá...

Eu gesticulava feito uma louca com as mãos ora agarradas no pescoço, ora abanando-se furiosamente no ar, o corpo sacolejando espasmodicamente na cadeira, o rosto vermelho de desespero e raiva por estar morrendo daquela forma tão idiota – assassinada por uma espinha de peixe. A essa altura os “gááááááá” haviam já se transformado em um misto de indignação e luta pela sobrevivência. Eu tinha nove anos e estava prestes a esticar as canelas pagando o mico do ano no meio de um restaurante abarrotado de gente. Ridículo. Mais ainda do que morrer atropelada pela enferrujadíssima Caloi Barra Forte ano 75 do padeiro Moacir (meu conceito maior de morte vexatória e dolorosa até aquele momento). Não sei quanto tempo levei naquela mímica bizarra – o fato é que mamãe percebeu que não era firula e que, definitivamente, aquilo não era vontade de tomar refrigerante: ela olhou para mim e o instinto de preservação da espécie foi incontrolável, assim como o grito que irrompeu assustador da sua goela maternal.

- Socooooooooooooorro! Minha filha está morrendo! Acudaaaaaaaam!

A hecatombe que se seguiu foi o equivalente microcósmico do apocalipse (o que quer que isso signifique). Apareceu gente de todos os lados, incluindo família, garçons, gerentes e curiosos mórbidos doidos pra acompanhar a novela mexicana da “menina que estava morrendo engasgada, tadinha”. As soluções para me resgatar da morte iminente eram mais apavorantes do que a possibilidade de passar desta para melhor.

- Dá farinha para ela, minha filha – e vovó dizia isso despejando uma chuva de farinha de mandioca dentro da minha boca pateticamente aberta.

- Faz ela comer banana.

- Tragam mais água. Tem que beber água gute-gute!

E foi uma avalanche interminável de água gute-gute, farinha de mandioca, banana e “gááááááá”... Davam-me tapinhas nas costas na tentativa de me desentalar. O barulho era tanto que não duvido que tenha inclusive corrido um bolão por ali (porque em todas as situações existe mesmo a torcida do contra). Felizmente havia por perto alguém sensato o suficiente que se lembrou de chamar os paramédicos, que me enfiaram um troço na garganta e retiraram a espinha-vergalhão-pseudo-assassina.

O gerente, com medo de que o incidente manchasse a reputação do restaurante, deixou nosso almoço fatídico por conta da casa. Passei uns longos dias com a goela dolorida, e uns longos anos sem conseguir me aproximar de peixe frito, farinha de mandioca e banana; continuo destrinchando ainda mais meticulosamente a comida com os talheres. A lição? Nunca, jamais, subestime o significado oculto de um “gáááááá”!