segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Primeiro a Gente Nunca Esquece!


Soundtrack: Peter Björn and John - Young Folks


E finalmente o Sabe de uma Coisa?, neste 31 de dezembro de 2008 (decidi antecipar as comemorações por motivos óbvios e porque estarei viajando entre 30 de dezembro e 4 de janeiro), completa seu primeiro aniversário! Ao longo desse tempo e das 123 postagens no ar muita gente passou por aqui, leu, comentou, não comentou mas virou leitor, se identificou, se acumpliciou, se emocionou, se divertiu, refletiu, chorou, riu, se espantou com a minha tendência a trocar o layout como quem troca de roupa, se correspondeu comigo por e-mail, me adicionou no Orkut e no MSN, me puxou as orelhas na época das minhas ameaças de blogcídio, muita gente me deixou fazer parte da sua vida e passou a fazer parte da minha, muita gente fez, aconteceu e interagiu com esse espaço e é em parte responsável por ele estar comemorando esse primeiro ano de existência.

Ao longo desse um ano foram muitos aprendizados, trocas, compartilhamentos, muito amadurecimento e crescimento em todas as esferas. E eu só tenho a agradecer a todos vocês, amigos, vizinhos, seguidores, leitores esporádicos, à galera que sempre faz um pit stop pra comentar, à galera que não comenta mas que está religiosamente por aqui e, por último porém não menos importante, aos comentaristas anônimos - que mesmo preferindo continuar no anonimato são os anônimos mais legais do mundo e sempre deixam uma palavra de carinho - pela sempre fantástica companhia e por terem feito essa pequena blogueira que vos escreve desrespeitar as fronteiras de Belém do Pará e, literalmente, rodar o mundo:



Este mapinha - printado do contador de acessos - mostra os lugares onde esse blog foi lido ao longo de 2008. Muito obrigada ao pessoal de norte a sul deste Brasil, Portugal, EUA, Japão, França, Holanda, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália, Suíça, Canadá, Peru, Emirados Árabes, Nigéria, Moçambique, Turquia, Áustria, Bélgica, Egito, Nova Zelândia, África do Sul, Paraguai, Cabo Verde, México, Argentina, Irlanda, Indonésia, Nicarágua, Índia, Chile, Finlândia, Senegal e tantos outros que levaram o Sabe de uma Coisa? pelos quatro cantos do planeta!


A todos vocês que fazem parte disto, eu agradeço - pelo carinho, pela companhia, pela amizade, pelo crédito... por estarem sempre comigo e por provarem dia após dia que esse negócio de dividir as pessoas em virtuais e reais é uma grande balela, pois o calor humano é algo que ultrapassa a fronteira dos pixels. A cada um minha admiração, meu respeito, amizade e gratidão. Feliz Ano Novo pra todo mundo, que esses 365 dias que virão sejam dias de paz e de grandes alegrias para todos nós.

Nos vemos em 2009. ;)

Beijos!


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Sobre Amor e Outras Luzes


Soundtrack: Eels - My Beloved Monster




Ontem, 25 de dezembro, Natal, fui trabalhar como de costume - porque médico não tem feriado nem dia santo e porque eu simplesmente não consigo deixar de passar no hospital para avaliar os pacientes internados. A verdade é que nem precisava ter ido já que o plantonista que segura as pontas nessas datas estava por lá, mas fui - e, depois de passar a visita nas enfermarias, resolvi dar uma esticada até o shopping mais próximo a fim de pegar um cinema, coisa praticamente impossível durante a semana. Nada de filmes-cabeça ou produções oscarizáveis: a idéia era assistir a algo leve e sem grandes pretensões além de entretenimento, e eu já estava quase comprando o ingresso quando vi que Marley & Eu, adaptação para as telas do best-seller homônimo de John Grogan, dirigida por David Frankel (de "O Diabo Veste Prada") e que conta com Owen Wilson e Jennifer Aniston no elenco, estava estreando no circuito e que faltavam apenas alguns minutos para o início da primeira sessão. Li o livro há alguns meses e, coincidentemente, li anteontem a resenha do filme na edição de dezembro de uma das revistas que assino - e já havia mesmo me apaixonado irremediavelmente pelo incontrolável e desastrado labrador cuja história, verídica e contada pelo dono, serve como pano de fundo para uma viagem pelos caminhos e descaminhos que regem as relações entre humanos e animais e, sobretudo, entre humanos e humanos.

Marley & Eu não é um filme sobre cachorros, apesar de o seu protagonista ser um endiabrado porém adorável "bichinho" de 4 patas: o labrador de 50 kg é do tipo que destrói todos os móveis, monta nas pessoas, faz xixi em lugares inapropriados, arrebenta portas por medo de trovões, rompe paredes de compensado, baba nas visitas, arranca roupas de varais vizinhos, come praticamente tudo que vê pela frente - incluindo revestimentos de sofás, jóias, um telefone e uma secretária eletrônica - e que torna todas as tentativas de adestramento um grande fiasco. No entanto, mesmo sendo tão desajustado, Marley está longe de ser - como sugere o subtítulo do filme - o pior cão do mundo: da mesma forma que recusa qualquer limite ao seu comportamento, seu amor e lealdade também são ilimitados. Marley, à medida em que transforma a vida dos Grogan em uma fonte inesgotável de confusões, se torna um devotado membro da família e mostra que o amor incondicional pode vir de várias maneiras - algumas mais estabanadas, é verdade, mas nem por isso menos incondicionais ou menos leais. Marley & Eu, mais do que a história de uma família e seu animal de estimação, é uma história sobre amor, sobre amar alguém cheio de defeitos, como todos nós, e ser amado por esse ser; sobre o quão feliz e rica pode ser essa convivência desde que deixemos os senões de lado. É quase impossível não simpatizar com o grandalhão, não se acumpliciar com suas travessuras e não se deixar cativar por seu coração puro.

Marley & Eu é uma história para todas as idades, lindamente despretensiosa como igualmente o são os amores gratuitos, esses que nascem e independem de razões para existir. É uma história sobre tolerância, comprometimento, amizade e incondicionalidade - que ultrapassa a relação entre homem e animal e estende profundas raízes para o campo das relações interpessoais, que tantas vezes esbarram em reservas tão inúteis quanto castradoras. Uma história, talvez, sobre vida e morte, e sobre os laços que realmente importam nesse percurso que fazemos entre essa existência aqui, tão única com suas alegrias e dores, e o instante de apagar-se dela. Uma história para rir, para chorar, para se emocionar, para pensar e, sobretudo, uma história para não ignorar nem esquecer.

Ainda dá tempo de desejar um Feliz Natal, não? Afinal de contas, Natal é todo dia, desde que estejamos de coração aberto ao verdadeiro significado dessa data... Então Feliz Todo Dia a todos, e um 2009 carregado de 365 dias de boas energias e de amor em overdoses, minha gente, muito amor pra todo mundo!

Beijos!

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UPDATE:

Minha mãe, passando por aqui para ler minha opinião sobre o filme - já que a intimei a assisti-lo - deu uma risada e saiu-se com esta: se esse Marley fosse uma pessoa, sem dúvida seria você. Até o olhar é igual. Mães... quem pode com elas?



segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Inviolável Humanidade

Demasiadamente, embora.

Soundtrack: José González - Heartbeats



Entre todas as estranhezas que me fizeram te amar, eu talvez tenha amado demasiadamente mais a mais banal – aquela de cuidar a urgência como se fosse uma tua velha amiga que se achegava a ti mordendo o lábio provocativa, e que quase infantil deitava-se no teu colo e abraçava-se ao teu pescoço e se confundia inteira contigo a ponto de não se saber onde um começava e o outro terminava, a tua urgência sempre foi uma fêmea voraz. Eu, por isso, talvez, a tenha amado. Eu talvez a tenha amado porque ela te possuía, era incontida e maior que tu, era ela quem falava pela tua boca quando a tua língua se descontrolava e galopava frenética em frases despedaçadas por pequenas pausas delituosas – e, nesses silêncios pontuais, era a tua meteórica paciência pensando, pesando-me, eu sabia, eu sempre soube. Eu sempre soube que a tua pretensa força era o que te fazia sofrer. O que eu não soube, e sequer poderia – porque o caótico desalinho entre nossas expectativas nos fez verter dias afins em tempos antagônicos – é que o teu pretenso sofrimento era também o que te fazia forte.

Eu talvez tenha amado demasiadamente a mais banal, e amei em grande parte porque me assustam essas coisas raras que desaparecem com a mesma velocidade com que despontam e deixam esses ecos vazios na memória atônita, essas ranhuras cicatriciais que nunca fecham porque estamos sempre a esgarçá-las com os dedos sujos – de saudade, de desespero ou de algum outro desejo vão escondido sob as unhas, esperando a hora de se disseminar febril. Os meus dedos não conhecem sossego, a minha pele nunca está intacta, eu nunca estou intacta e, de fato, quem está? Eu demasiadamente amei a mais banal embora todas as tuas estranhezas me fizessem sentir uma mulher comum, mas extraordinariamente comum como nunca houve outra, eu era extraordinariamente única porque as minhas próprias estranhezas sobressaíam entre o que eu acreditava ser o meu melhor, embora não fosse – o meu melhor é o que veio depois, o que rasguei na carne quando num acesso de fúria espantei das vértebras as falsas virtudes que, como traças, me roíam os traços mais reais.

Os traços mais reais – embora essa vida seja uma ficção e a verdade se esconda em um canto inviolável da humanidade que nos cumprimenta zombeteira diante do espelho quando esquecemos a porta aberta.


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José González é sueco, filho de argentinos, canta em inglês e sua música lembra o que seria um folk à la Nick Drake com João Gilberto. Suas influências contemporâneas são Elliot Smith, Joe Pernice e Kings Of Convenience, mas sua voz evoca a de cantores clássicos da história da música pop como Mark Eitzel e Mark Kozeleck. A faixa Heartbeats integra o álbum Veneer, lançado na Suécia em 2003, ponto de partida para que González ultrapassasse a fronteira musical da Escandinávia e ganhasse as paradas da Europa.

Quanto ao texto, não custa enfatizar: FICÇÃO. E não tentem se - ou me - convencer do contrário!


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Aquele Outro Caminho

Quando foi? Eu nunca aprendi.

Soundtrack: Ingrid Michaelson - Breakable



Estou estranhamente calma, tão diferente de antes, quando cada passo meu beijava o chão como um gemido enviesado de dor. Não há falta. O que há eu não sei, talvez de fato nem haja nada para saber e isso não é ruim, é como cair em um precipício em slow motion: não dói nada, não dói, nem cansa. E até já me desafeiçoei àquela mania de catalogar sentimentos por cores porque eles escorregam uns nos outros dentro do coração trespassado por uma flecha desenhado a dedo no espelho embaçado do banheiro, mas lembra, eu te havia mesmo dito que um dia tudo perde a cor - e tu, talvez, não me tenha compreendido porque falei com os olhos marejados de sussurros mas sem arriscar palavra, enquanto teus olhos injetados de algum sentido que eu não alcançava lambiam o dia volátil estendido diante da outra janela. Eu te havia mesmo dito que não precisava de ti para absolutamente coisa alguma mas que essa completa e lúdica inutilidade tua na minha vida só me fazia te querer mais, e era tão pateticamente bom, e foi nessa hora – tenho certeza – que todas as coisas que eu pretendia verbalizar se acotovelaram indóceis na ponta da minha língua e viraram um soluço fosco, e por isso eu disse apenas “me ajuda a te entender”. As perguntas que escondi sob o colchão permanecem lá, as respostas eu não sei; talvez perambulem sem se descobrirem respostas naquele outro caminho, o de antes, o que era meu e teu quando éramos tu e eu, e quando fomos tu e eu? Porque este caminho, este caminho atropelado por pequenos descuidos, este é ou meu, ou teu, ou da mulher que escarra esperanças viciadas na esquina de um amor que não veio, pobre mulher, quem sabe eu tenha te livrado de um mal maior. Porque essa vida, esse lapso de vida que nos ladeia hoje, é uma viela estreita, quase estrangulada, e não cabemos lado a lado sem nos ferir mutuamente – e aquele atalho que um dia risquei com os cabelos no travesseiro enquanto revisitava teu rosto antes de dormir se perdeu, desnorteava um pouco cada vez que outra saliva nutria tua boca e te acomodavas entre outras pernas, e que as minhas próprias pernas conheciam outras posses e eu alimentava ao seio outras sofreguidões, eu nunca aprendi a te ler.

Eu nunca aprendi. Quando foi que nos vimos pela última vez?


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Ingrid Michaelson é uma cantora e compositora nova-iorquina que faz um som indie-pop/folk e tem músicas nas trilhas sonoras de Grey’s Anatomy (olha aí os seriados médicos outra vez) e One Tree Hill. A faixa Breakable faz parte do álbum Girls and Boys, lançado em 2007.


domingo, 14 de dezembro de 2008

Bélica

Eu me compartilho.

Soundtrack: Cary Brothers - Ride


Sou um verbo pagão de carne e osso, de alma púrpura confluente para intenções insones. Este corpo pequeno não me contém; este corpo pequeno se estende além, me escapo e viro um rastro inquieto, crescente em corpos alheios. Necessito invadir e tomar conta e ser eu-embora-noutros, por outros, eu me compartilho inteira com quem couber nessa ciência de partilhar-se descuidando reservas – e só, porque o que sou não cabe em insuficiências, tenho essa natureza que rejeita fragmentos e restrições. Eu me compartilho, egoísta inconformada, quero-me aqui e lá e em qualquer lugar, invado e me deixo invadir numa simbiose quase bélica. Guardo nas dobras da pele os calores de outras peles e minha voz é vincada das inflexões de outras vozes mas, ainda assim, me pertenço, e somente a mim – e sendo dona de mim é que ato as rupturas níveas de solidão rasgadas na minha história, e que desato meus nós com os dedos ágeis de quem tece seus próprios caminhos ainda que às escuras, tenho destinos e sonhos riscados nas digitais. Verbo pagão vertendo alma. Sou imprevisível, não sou consensual: existo litigiosamente.


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Cary Brothers é um compositor e cantor americano de indie rock que ficou conhecido com a canção Blue Eyes, incluída na trilha sonora do filme Garden State. Suas músicas também apareceram em vários seriados como Scrubs, Grey’s Anatomy e ER. A faixa Ride faz parte do CD Who You Are (2007), do EP Waiting For Your Letter (2005) e da soundtrack do filme The Last Kiss (2006). Fica a dica.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Live and Let Die

Quanto você viveu hoje?

Soundtrack: The Fray - How to Save a Life




O que não nos mata nos fortalece.

Das verdades relativas, talvez seja essa a mais pródiga em polimentos auto-sujestionantes nem sempre condizentes com a complexidade dos fatos – ao menos com aqueles relacionados às pequenas mortes disfarçadas do dia-a-dia, dessas que nos roem os ossos com tanta sutileza que mal deixam entrever que, em pouco tempo, não haverá sobrado muita coisa para fortalecer.

Pequenas mortes são persuasivas e dissimuladas, é difícil lhes dizer “não”. Pegam-nos desprevenidos, talvez porque surjam das pequenas dores cotidianas para as quais raramente estamos preparados, tão ocupados somos sempre em nos blindar seletivamente para sofrimentos gigantescos, lancinantes. Pequenas mortes nos interceptam pelas frestas abertas em nossas frágeis armaduras de isolamento emocional e, nos espaços deixados por entre os reveses da vida, vão se entalhando, se infiltrando no inconsciente até se tornarem um estilo de viver – ou de quase-viver. Porque pequenas mortes aprisionam justamente o que caracteriza a vida em sua acepção menos fisiológica, porém mais importante: ter – ou buscar – um motivo lúcido pelo qual seguir vivendo. Pequenas mortes têm mãos geladas que nos esmorecem os ímpetos do espírito e nos fazem reféns de nosso próprio medo – medo de sentir, medo de sofrer, medo. Medo.

Pequenas mortes são paradoxais – insidiosas, morre-se de dentro para fora. Testam os limites do coração, desafiam a perseverança humana em se permitir acreditar que ainda vale a pena acreditar, mesmo sem saber exatamente em quê. Tolhem o livre arbítrio dos nossos sentimentos, porque pequenas mortes são egoisticamente racionais: se não há o que sentir, não há pelo que sofrer, e já se sofreu tanto nessa vida, qual o sentido em sofrer mais, não é mesmo? Trancamos-nos em esquifes de ceticismo indiferente e seguimos assim, no piloto automático, levando. Apenas levando. Simplesmente porque é mais fácil – embora, na verdade, o mais fácil seja indiscutivelmente o mais difícil.

E apesar de tudo algumas dessas pequenas mortes, por incrível que pareça, podem ser a tábua de salvação capaz de nos resgatar da castração emocional imposta pelo medo do sofrimento. A capacidade de sentir talvez seja a moeda mais real nesse mundo de valores a cada dia mais irreais, e alguns sofrimentos são inevitáveis e até mesmo necessários para que não nos desumanizemos por completo. São as pequenas coisas que fazem a vida doer, mas a dor existe para gritar que algo não vai bem – e, certas horas, para matar a dor, é preciso morrer com ela. E são essas, as pequenas mortes deliberadas no intuito de matar o que nos faz morrer, os ritos de passagem que proporcionam os grandes renascimentos pessoais. São essas as pequenas mortes que podem salvar uma vida – aquela vida que, muitas vezes, nem lembramos que ainda temos.



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Intervalo mais curto do que eu planejava, ok, minha força de vontade beira o negativo, mas a verdade é que eu adoro isso aqui e morri de saudade de todo mundo nesse tempinho out-blogger... muito obrigada à galera toda que me mandou e-mails de protesto e, ao mesmo tempo, de apoio e cheios de mensagens legais e de votos de boa sorte, aos que o fizeram lá no MSN e aos amigos que estão comigo independentemente das minhas loucuras, me senti muito querida!

Pra comemorar, tem postagem minha também lá no Espasmos, uma dessas histórias que só acontecem comigo, dessa vez dentro de uma agência bancária. Nos vemos por lá.

Beijos a todos!


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A Última.

Quando o que não se diz é o que fala mais alto.

Soundtrack: Noa - Eye in the Sky



Eu gostaria que esta fosse uma carta de amor. Gostaria de te escrever para contar da minha vida; para dizer que ontem entrei naquela velha loja de discos – aquela ao lado da padaria onde compraríamos pães de queijo e biscoitos de nata nas manhãs de sábado e domingo – e ouvi incontáveis vezes a música que escutaríamos juntos e que talvez embalasse nosso sono, nossas tardes de preguiça fazendo nada, fazendo tudo. Ou para dizer que, entre duas páginas do meu livro preferido, pude ver – em meio aos parágrafos e aos hiatos brancos, tímidos, do papel escorregado sob a negra tinta – as entradas do filme a que assistiríamos na noite em que o carro pifaria sem gasolina na esquina da tua rua e caminharíamos até a tua casa debaixo de chuva, de mãos dadas e rindo, brincando de chutar as poças de água, e estaria frio, muito frio, e nos aqueceríamos entre beijos macios e lençóis quentes, entre beijos quentes e lençóis macios. Para, talvez, te contar do meu emprego novo ou que me mudei outra vez – agora para a tal casinha pequena por fora e grande por dentro, com teto alto e janelões azuis encimando as jardineiras, do jeito que eu sempre quis – e que os móveis, surpreendentemente, chegaram na data prevista, uma segunda-feira, e que não precisei passar o resto da semana fazendo as refeições numa lanchonete embora não goste de cozinhar somente para mim.

Eu talvez te contasse que o cachorro enfim desistiu de esconder os chinelos inadvertidamente esquecidos pela casa e que, finalmente, as roseiras que plantei me deram alguns botões de rosa; vi essa manhã que haviam nascido, quem sabe se encorajem e virem flor – nunca soube quanto tempo levam para desabrochar, não sei se um dia ou dois, ou mais. Ou que o carteiro continua entregando minha correspondência na casa do vizinho – mesmo em novo endereço, algumas coisas nunca mudam. Ou que o médico indicado, naquele churrasco, pelo rapaz de óculos com cara de adolescente cujo nome não me recordo acertou em cheio no tratamento da minha insônia embora não seja neurologista ou psiquiatra, e sim cardiologista, e que não bebo mais tanto café. Ou que ganhei uma festa surpresa no meu último aniversário com direito ao bolo de nozes de que tanto gosto e velas assopradas num só fôlego depois de fazer um pedido, que não posso contar ou não se realiza e que eu, que tanto gosto de bolo de nozes mas não como doces, saí da dieta porque seria uma tremenda indelicadeza não provar um pedaço do meu próprio bolo de aniversário.

E nem sei quantas outras banalidades eu contaria; só sei que gostaria de não estar chorando dessa maneira enquanto te escrevo esta carta. E te escrever esta carta é tão doído porque, mesmo não sendo uma carta de amor, não deixa de sê-lo – e eu, que tanto te amei, e talvez siga te amando enquanto viver apesar de todos os amores que ainda virão, nem melhores nem piores, apenas outros amores com outras músicas e filmes e livros, e outras lembranças e nomes, gostaria de te pedir “fica”, mas não o farei. Eu gostaria que esta fosse uma carta de amor, mas esta carta – que nunca vais ler, pois a escrevo muito mais em mim do que para ti – é a maneira que encontrei de me despedir da parte tua que permanece comigo, pois nunca deixei que partisses completamente. E, agora, preciso que vás. Eu abdico do futuro que jamais teremos em nome de um presente que é apenas meu. A tua história já não cabe na minha; a minha história precisa voltar a caber em mim. Esta é a última carta de todas aquelas que nunca te enviei e que nunca lerás, a não ser no meu silêncio e nessa distância continental que se inscreve entre o que nunca nos dissemos, entre o que nunca faremos. Preciso que vás; eu fico – e, de certa forma, em outra direção, eu vou também.


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Um pequeno P.S. para o Sr. Anônimo que, nos comentários do post anterior, declarou que me adora mesmo com tudo que vem na mala (e eu espero que a "mala" não seja eu): a mesma curiosidade que matou o gato pode, fácil fácil, matar uma blogueira sem poderes adivinhatórios. Que tal voltar e revelar pra nós sua identidade secreta, hein? ;)

Ótimo fim de semana pra todo mundo!

E Edu, obrigada pela música :)


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Persuasão

As minhas reticências te gritam, indiscretas.

Soundtrack: PJ Harvey - The Slow Drug



Tento me persuadir de que toda essa urgência em te alcançar, toda essa vontade do teu toque – vontade que me acelera a respiração, e me intumesce e preenche úmida a boca quando tento adivinhar o gosto do teu beijo – eu inventei. Inventei o arrepio insolente, rebelde a contenções, que me eriça cada centímetro de pele quando minha memória, desavisada, pronuncia teu nome; inventei meu corpo dolorido, tenso, ansioso por ti, e esse rosto que teima em sorrir com as tuas tolices, e esse descompasso no peito em sincronia com o sangue que lateja nas minhas veias e corre lânguido quando dizes “vem”, ou quando escancaras teus instintos. Tento me persuadir de que esse encanto que faz os meus olhos escuros se inundarem das tuas cores, essa paixão que rejeita limites, esse ímpeto de conhecer cada mínimo detalhe teu, eu inventei.

Tento me persuadir e falho, e sempre falho; ao contrário, me convenço de que meu espaço é qualquer um onde eu esteja embebida da tua saliva e dos teus olhares – e meus lábios estremecem ligeiramente, cúmplices da certeza de que tudo o que um dia foi medo é hoje vontade de estar contigo. Porque eu necessito dessa imprudência de te querer sem medida, eu necessito da doce violência dos teus desejos, eu necessito estar nas tuas mãos, pequena e entregue, entrelaçada nas tuas carícias e nos teus dedos longos, eu necessito beber gota a gota a tua presença e tatuar o teu cheiro nos timbres que vibram desse querer-te ora vertigem, ora mansidão.

Pois quer meu corpo respingue desejo ou transborde ternura eu estou sempre em ti, querido, em algum lugar fora de mim.


domingo, 30 de novembro de 2008

Eu Acredito.

E ponto.

Soundtrack: Clap Your Hands and Say Yeah! - Let the Cool Godess Rust Away



Quando digo eu acredito, o que sai da minha boca subverte o óbvio e dá as mãos a uma pluralidade surpreendente, às vezes ininteligível, de sentidos; e entre não duvido e tenho fé cabem várias de mim, todas carregadas dos meus sotaques, e vícios, e signos, todas entrelaçadas ao que sinto cada vez que respiro fundo e me reconheço – e me recomeço.

Eu acredito pode ser calado: abraço quente de calor colado ao corpo, ou um silêncio pontuado de pequenos gestos apaziguando as exacerbações da minha alma anárquica. Eu acredito pode ser calado, nunca mudo, nem cego – pois eu acredito pode ser, também, eu vejo e eu desacredito em quem diz que não vê. Eu acredito pode ser os meus olhos cheios de riso ainda que eu chore – pois eles não se turvam e sempre brilham, e vêem através. Eu acredito pode ser eu amo, assim, um amor intransitivo. Um amor intransitivo e, apesar de uno, um amor plural, desses que desobedecem as semânticas, transcendem aforismos, rejeitam silogismos: meu amor é linguagem outra, própria.

Eu acredito pode ser eu vou – me dou o direito de não renunciar ao próximo passo. Eu acredito pode ser eu posso. Eu acredito pode ser eu quero. Eu acredito pode ser é meu. Eu acredito sou eu parada no meio da rua observando rostos desconhecidos que jamais esquecerei, sou eu rabiscando no ar as palavras que invento, sou eu aqui e ali, particulada, sem me perder de mim, sem me negligenciar ou diminuir – pois eu acredito, antes de qualquer coisa, é sempre eu acredito em mim. Eu acredito sou eu cansada, ferida, coberta de receios, às voltas com meus descontroles, e cruzes, e monstros, mas de pé. Eu acredito pode ser – e invariavelmente é – eu vivo. E, seja como for, eu acredito.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Um Breve Olhar Mememizado Sobre F. em 52 Frases de D.


Sountrack: Edwin Collins - A Girl Like You


1 - F. é magra mas (sempre) acha que está acima do peso.
2 - Em 2008 passamos 43 horas juntos. (vc contou??)
3 - Dessas horas mais falávamos do que prestávamos atenção na aula.
4 - Por causa disso levei uma bronca, estávamos discutindo a reforma gramatical (que ela acha besteira) da língua portuguesa (mas Günter, era ela quem estava falando).
5 - F. tem um segundo nome que começa com D., será coincidência?
6 - eu criei uma personagem chamada F., na verdade era a própria F.
7 - 7 era o número dela na chamada da turma, sei porque eu era o 6 querendo ser 7.
8 - também criei duas outras personagens baseadas em F.: uma maga curandeira chamada de Tesra e uma moça capaz de criar sonhos e atrair as pessoas para eles chamada de Caliopede.
9 - Chamo-a particularmente de musa.
10 - ela é canhota (me too).
11 - ela é a melhor escritora que já li.
12 - fumamos um cigarro juntos, eu não sabia que ela fumava. (aquele foi o primeiro e último cigarro, D.)
13 - ela não vive sem rock.
14 - todos os perfumes se acomodam perfeitamente a ela.
15 - Koray já a conheceu e Páris se apaixonou por ela.
16 - vivemos marcando encontros irrealizados.
17 - ela tem compulsão por tirar fotos, estou eu lá parado e lá vem ela com um flash.
18 - F. e eu somos contemporâneos um do outro ( que sorte a minha).
19 - Se ela fosse um animal seria um gato.
20 - se ela fosse um ser místico seria uma bruxa ou uma fada, mas quem sabe os dois juntos?
21- a conheci quando eu tinha 21 anos ou era 20?
22 - ela detesta rpg (por enquanto).
23 - já a retrataram em um mangá.
24 - ela é médica. Pena que não seja cardiologista...
25 - ela não gosta de médicos ou de ir a médicos.
26 - ela tem a aparência da mulher paraense, as mulheres mais lindas são as paraenses.
27 - F. é linda.
28 - F. é cafeínômana/cafecólatra, mas só os grandes são.
29 - Ela trabalha na cidade em que moro.
30 - ela mora na cidade em que eu estudo.
31 - ela ainda não me devolveu o Drummond.
32 - ela é a mulher mais inteligente que conheço pessoalmente.
33 - F. ama os animais, gosta de ler e tem cultura.
34 - F. é para casar.
35 - F., quer casar comigo?
36 - imagina só, F.D.B esposa de D.J.V.
37 - esquece os dois últimos, F.
38 - eu já a cantei com Eduardo e Mônica.
39 - aliás, uma vez a chamei de Mônica e ela achou que eu tinha errado o nome.
40 - Um dia vamos ter um filho ( um labrador ou um são bernardo) chamado de Procópio Ferreira (F., diz que sim, diz que sim, vai.)
41 - F. detesta neurologia, eu amo neurologia.
42 - Já a compararam a Clarice Lispector.
43 - Acho Clarice uma boa escritora, mas Clarice faz eu me perder. F. tem seu próprio estilo.
44 - Lendo F. eu me descubro, eu me encontro para poder então me perder e me reencontrar.
45 - Sou viciado no que F. escreve.
46 - Sou fã de F.
47 - Ela não gosta de literatura apenas, ela entende.
48 - F. nunca acabou de escrever aquilo que eu comecei.
49 - Ela tem preguiça de escrever as coisas manualmente.
50 - é melhor web designer que eu (olha que estudei pra isso).
51 - a conheci em uma segunda-feira.
52 - a última vez que a vi foi em uma quinta feira.


Quando escrevi o post dos 101, meu amigo Diego (o linkzinho tá aí no nome) protestou: "não vale você escrever sobre você mesma" - e se dispôs a fazer um Top 77 a meu respeito. MAS, como D. é "ligeiramente" hiperativo e não ficaria em hipótese nenhuma sentado numa cadeira pensando em 77 itens para escrever (pensar até pensaria, porque a cabeça dele também trabalha na velocidade da luz; o difícil seria ficar parado fazendo isso), o Top 77 se transformou em um Top 52, que eu roubei lá do blog dele e trouxe pra cá. Os (poucos) grifos em itálico são meus; tudo mais é obra do rapaz.

Esclarecendo: as aulas em questão eram as aulas do nosso curso de criação, lá no Instituto de Artes; Günter era o nosso professor "alemón"; eu REALMENTE detesto passar da condição de médica à de paciente, é um contra-senso, eu sei, mas é a verdade; nosso filho Procópio Ferreira está definitivamente nos meus planos; somos dois hiperativos de gogó hiperfuncionante, deve ser terrível ficar perto da gente quando estamos juntos; é fato, tenho preguiça de escrever - o PC foi a grande invenção do século na minha humilde opinião.

D., te amo (mesmo depois de vc ter dado um bolo em mim e no Drummond no último encontro irrealizável, ok?). Obrigada :)

Beijos a todos e excelente fim de semana!

domingo, 23 de novembro de 2008

Menininhas

Para Flá. Não eu - ela.

Soundtrack: Cyndi Lauper - Girls Just Wanna Have Fun



Não me lembro de como comecei a falar com ela. Mas lembro que achei o máximo aquela menina que era um abuso de legalzice ter o mesmo nome que eu – sem contar o fato de ser igualmente primogênita, e de que suas duas irmãs mais novas tinham os mesmos nomes das minhas. Foram outras as coincidências que nos fizeram parar, no finzinho dos anos oitenta, numa vilazinha bucólica com jeito de casinha de bonecas encravada no meio da Floresta Amazônica – um lugar mágico, capaz de proporcionar aos pequenos uma infância igualmente mágica – junto com tantas outras crianças cujos pais, como os nossos, eram “ciganos de hidrelétricas”, transferidos de tempos em tempos e com as respectivas famílias a tiracolo por esse Brasilzão continental, a serviço do progresso da nação. Fosse qual fosse o presumível elo cármico determinante para o encontro de duas menininhas tão parecidas, embora tão diferentes, ali naquele paraíso perdido, indiscutivelmente a similaridade de histórias e nomes nos aproximou.

Eu, quando nos conhecemos, tinha nove ou dez anos; ela, dez ou onze. Eu tímida, calada, um perfeito caranguejinho canceriano de casca dura e coração mole; ela, um rojãozinho extrovertido e tagarela, do tipo que dava nó no juízo de quem tentava acompanhar aquele pensamento frenético. Eu mais gestual, já nesse tempo falava mais com os olhos que com a boca; ela mais verbal, falando com as mãos e pelos cotovelos. Ela, um ano mais velha, virou quase o meu guru particular e parceira de longos passeios de patins pelas ruas da Vila, duas menininhas on the road. Barbie e bolhinhas de sabão. Piscina, festinha no clube no sábado à noite, São João. Temporada de ingás, a polpa branquinha e doce, branquinha como algodão, doce como aquela vida. Goiabeiras carregadas de goiaba e menino, canelinhas dependuradas exibindo algumas ferroadas e arranhões. Colégio, sonho recheado na hora do recreio, medo da mulher de branco, campainha e a volta para casa cortando caminho pelo hotel ou pelos alojamentos. Não tenho a menor idéia do conteúdo das nossas conversas na época; não me lembro se partilhávamos sonhos malucos ou se, além de papéis de carta, trocávamos também confidências. Também não me lembro se alguma vez fizemos aquela promessa de nunca nos perder uma da outra, não sei, não sei mesmo. O que sei é que o que nos unia devia ser um monte de bobagens, mas bobagens tão sinceramente compartilhadas que, quando ela mudou de cidade – ela tinha doze anos e eu onze – me vi inconsolável. E, entre tantas memórias subliminares, sobressaiu nítida a da despedida, materializada nas letrinhas de criança, dela, desenhadas sobre uma página cor-de-rosa do meu diário, “não se esqueça de mim”. Fiquei, ela foi. Mas, de certa forma, ficou também.

E dá-lhe tempo passando, a gente crescendo, a vida seguindo, eu deixando a vila três anos depois pra morar na capital, aprendendo a me virar na “selva de pedra”, a adolescência se estatelando dentro de mim com seus hormônios e inquietações, inúmeras mudanças de colégio, inúmeros primeiros dias de aula, inúmeros “oi, de onde você veio mesmo?”, espinhas, cólicas, primeiro namorado, segundo, terceiro, cabelos coloridos e descoloridos, rebeldia, TPM, vestibular, faculdade e um monte de eteceteras, incluindo todos os gerúndios e futuros-do-presente capazes de nos fazer deixar bagagem mnemônica para trás por falta de espaço ou por pura negligência mesmo. Eu ainda levando muito a sério aquilo de “não se esqueça de mim”, ela indo e vindo no meu pensamento. Cinco, oito, dez, quinze, dezoito anos passados. E dezenove anos depois, com uma ajudinha providencial dessa geringonça fantástica e sem fronteiras que é a Internet, surpresa: entre tantos e-mails, um “você não é a Flávia assim, assim e assado?” – sim, eu era a Flávia, uma Flávia já balzaquiana e de canelas impecáveis, mas a tal "Flávia assim, assim e assado", de olhos arregalados, respiração suspensa e danada de feliz porque ela, a querida tagarela que não perdia a chance de me azucrinar dizendo que o nome era sua propriedade e que ela apenas fizera a gentileza de me emprestá-lo, havia me encontrado.

E toca a responder o e-mail, e lá vem resposta, e festa, e corre-corre pro MSN... e infinitas histórias pra contar, outras tantas pra lembrar, e gargalhadas, muitas gargalhadas, e saudade, muita saudade, e planos, muitos planos. Minha amiga hoje é jornalista, casada e mãe da Isabela, uma menininha linda. Continua tagarela e com o irritante bordão “como sou mais velha que você o nome é meu, apenas te emprestei” na ponta da língua. Continua rojãozinho, espirituosa e divertida. E o mais importante, continua minha amiga, dessas amizades límpidas e genuínas que se conservam intactas apesar de quase duas décadas de separação. O mundo é realmente muito pequeno quando se está unido a alguém por laços fortes de amizade. E nem é preciso usar botas de sete léguas para chegar até esse alguém; a própria vida, num desses loopings malucos e imprevisíveis, se encarrega de nos reaproximar daqueles que jamais deixamos para trás. O tempo passa, é inevitável, como também são inevitáveis as transformações que o destino e as responsabilidades nos impõem, como são inevitáveis determinadas escolhas e abdicações – mas não se deve abrir mão da própria essência, e uma parte crucial dela vem dessa capacidade intrínseca que nós, seres humanos, temos de amar e de nos permitir ser amados, apesar dos entraves e dos pesares, das distâncias e das discordâncias. É o que nos faz maiores. É o que nos faz, verdadeiramente, melhores.


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Acordes

Tuns e tás, blins e blens.

Soundtrack: Lucas Santana - Mensagem de Amor



Tu, longe, tão longe. E há um violão desafinado aqui, ao meu lado.

Arrisco um acorde, ouço meu coração que bate meio rock, meio bossa, meio qualquer coisa assim sem jeito, meio sem saber o que fazer com as mãos – e minhas mãos transpiram, suam frias, escorregam macias e sem pressa entre tantos tuns e tás e blens e blins, quase toco teu rosto com esses meus dedos úmidos desajeitados. Há um beijo tímido na ponta do meu indicador, leva contigo; é teu, e todos os outros que por descuido ficaram por aqui, nos dedos, nos lábios ou na intenção. Arrisco um acorde, blins e blens, as cordas riscam na minha pele as notas do teu nome; eu me deito sobre esse leito de sons, acorde-me para os teus sonhos. As notas que vibram nesse espaço vêm do meu desejo pelo teu ritmo, abre os braços, sentes? É a minha respiração repousada na tua, suave, feito canção que espera para nascer. Dedos úmidos desajeitados, meus, escorrego macia entre os teus tantos; vem. Tuns e tás, blens e blins, meio-rock-meio-bossa, coração, eu assim meio sem jeito – descompassada, ora aguda ora grave, ora certa ora inversa, blins e blens, ouves? Eu te amo.


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Metáfora do Dia

Nem tudo que reluz é ouro. Ou diamante.


Certo dia um homem, caminhando distraidamente pela rua, pensando na vida, deixou cair do bolso uma moedinha sem valor. Ao se abaixar para recuperá-la percebeu um brilho discreto e inconfundível no chão. O homem se esqueceu da moeda e tomou nas mãos aquela pedrinha reluzente; maravilhado, constatou que se tratava de um pequeno diamante – uma fortuna inestimável apesar do diminuto tamanho. Mal pôde acreditar que algo tão valioso finalmente tivesse ido parar nas suas mãos, e daquela forma tão inusitada; mas agora o diamante era seu, e nada no mundo o tiraria dele. Ainda trêmulo, o homem envolveu seu tesouro em um lenço com muito cuidado e carinho, e o depositou no bolso da camisa. Seguiu para casa feliz, agradecendo pela sorte que finalmente lhe havia sorrido.

Ao chegar em casa o homem trancou todas as portas e janelas, sentou-se na cama, retirou o diamante do bolso e se deteve a examiná-lo demoradamente. Era, de fato, um diamante. Pequeno, um pouco sujo da poeira dos calçados que o haviam pisoteado, mas um legítimo diamante. Talvez por isso ele tivesse sido ignorado pelos transeuntes; aquela ligeira crosta de terra decerto o fizera passar por uma pedrinha comum. Mas ele, o homem, dono de olhos treinados, conhecedor de pedras de todos os tipos, as valiosas e as de brilho falso, o reconhecera. Era, de fato, um diamante. E era seu, embora não soubesse muito bem o que fazer com ele. Decidiu guardá-lo dentro de uma caixinha de jóias, quietinho, seguro, a salvo da cobiça do mundo, até que fosse hora de retirá-lo.

Porém – apaixonado que era por belezas reluzentes – o homem continuou a colecionar pedrinhas. E, quando já não havia espaço para acumular tanta tralha, o homem passou a guardar as bijuterias na mesma caixinha de jóias que servia de refúgio para o diamante; este praticamente desapareceu, afogado sob tanto peso sem valor. O homem, a essa altura, tão ocupado estava em colecionar pedrarias que se esquecera dele. E numa noite de bebedeira abriu a caixinha de jóias, despejou todo seu conteúdo sobre a mesa de jantar e perdeu-se em admiração por todas aquelas cores e formas que saltavam diante de seus olhos... por fim, num surto de insanidade, apanhou o pequeno diamante – entre todas as pedras, a menor e mais desprovida de cor – e a atirou raivoso dentro do vaso sanitário. E puxou a descarga (!!!).

No dia seguinte, em meio à ressaca, o homem se lembrou do diamante e do que fizera. Desorientado, torcendo para que os acontecimentos da noite passada não tivessem sido mais que um terrível pesadelo, abriu a caixinha de jóias: vazia. Revirou a casa inteira: nada. Buscou em todos os lugares, vagou pelas ruas à procura de sua pedrinha... mas ela realmente se fora. E ele nunca mais tornou a vê-la, nem encontrou outro diamante – afinal de contas, diamantes não nascem em árvores, não é mesmo?


Moral da história: há pedrinhas chinfrim, há semijóias e há (pouquíssimos, raríssimos, exclusivíssimos) diamantes. Misturar as três categorias no mesmo balaio é abusar da sorte.


Beijos a todos e ótimo início de semana!

________________

P.S.: estarei um pouco ausente entre os dias 12 e 16 desse novembro devido a uma sequência de provas de residência espalhadas por aí. Na segunda-feira, 17/11, tô de volta. Torçam aí! :)


domingo, 9 de novembro de 2008

Desculpe, Foi Engano

O que é a vida para você?

Soundtrack: The Twilight Singers - Powder Burns




- Alô.
- Oi. Quem fala?
- Quer falar com quem?
- Quem é?
- Olha, você me ligou. Quer falar com quem?
- Com você.
- E quem é você?
- Não vale a pena dizer. Só queria falar com alguém. Com você.
- Ok, já falou. Até mais.
- Não desl...

O telefone voltou a tocar, olhei: novamente, número não identificado. Não atendi. Precisava terminar de escrever aquele romance, protelado há semanas – meio por bloqueio criativo, meio por uma vergonhosa e irresistível preguiça. A chuva forte despencando do lado de fora era um convite tentador ao ócio; o telefone, se esgoelando sem parar, ajudava a tirar o pouco de concentração que me restava. Depois da enésima ligação atendi, contrariadíssima, e não disse nada. Esperei. Ele falava em voz baixa e, dessa vez, parecia meio constrangido pela insistência.

- Desculpa. Você não me conhece, eu não te conheço. Disquei ao acaso, você atendeu. Preciso falar com você, por favor, não desliga. Vou me matar daqui a pouco e preciso conversar com alguém.

Ótimo. Um lunático na minha linha no meio da madrugada. Na melhor das hipóteses, um desocupado. Passada a surpresa do primeiro instante e cumprido o inevitável caminho susto-perplexidade-indignação-só-me-faltava-essa, respondi com meu habitual respeito pelas duas condições:

- Você bebeu?
- Pareço bêbado?
- Ok. Você cheirou? Sem ofensas.

Ele riu.

- Você é sempre assim?
- Assim?
- Assim, meio sarcástica. Sem ofensas.
- Ah, não, não. Só quando desconhecidos com idéias suicidas me telefonam no meio da noite. Sabe como é, instinto.
- Você parece ser legal.
- Você fala demais para quem vai se matar.
- Quantos suicidas conhece? Quero dizer, conheceu?
- Nenhum.
- Como pode saber se falam muito ou se falam pouco?
- Como posso saber se vai mesmo se matar ou se é um esquizofrênico a fim de “suicidar” o próprio tédio e a minha noite também?

Silêncio. Do lado de fora, só chuva. Silêncio e chuva, ambos caudalosos. Quase desliguei, ele tornou a falar.

- O que é a vida para você?
- O que é a morte para você?
- Perguntei primeiro.
- Tanta coisa. Nascer, crescer, reproduzir, passando por todos os intermediários, talvez.
- Dá pra ser mais clara?
- Comer, beber, beijar, brigar, ter dor de barriga, arrumar um emprego, pagar contas. Cair da goiabeira e ficar com uma cicatriz no joelho, sexo por amor, sexo sem amor, fazer dieta, sabotar a dieta, tomar uma cerveja gelada num dia quente, tanta coisa, tanto faz, eu não sei. Não interessa o que é a vida para mim. Interessa o que é a vida para você. É VOCÊ quem quer se matar.
- Não quero. Vou.
- Ok, é você quem VAI se matar.
- Isso.

Silêncio. Para mim ainda parecia um trote mas, de repente, começou a me incomodar MESMO a possibilidade de que aquele sujeito fosse realmente se suicidar. Não sei se o incômodo era saldo da proximidade da vida ou da morte dele; o fato é que de repente aquilo tudo ficou muito desconfortável, principalmente porque eu não fazia idéia de quem era o fulano que me escolhera como ouvinte das suas – até prova em contrário – últimas palavras. Ele parecia tão próximo. Talvez estivesse esperando que eu dissesse “não faça isso” ou coisa parecida, ou algum tipo de discurso sobre como a vida é bela e a morte é negra, mas o insólito da situação tirara de órbita minha capacidade de raciocínio lógico. Ainda assim, foi minha vez de quebrar o gelo.

- E afinal, vai se matar por quê?
- Pensei que não fosse perguntar.
- Não ia. Perguntei porque acabou o assunto.
- E por que não desligou?
- Prefere que desligue?
- Você é estranha.
- Você ainda não viu nada.
- Não vejo sentido em continuar vivendo.
- Hã?
- Não vejo sentido em continuar vivendo.
- Isso é clichê. Não acredito que vai se matar por um clichê.
- A vida é um clichê.
- Não acredito que vai se matar por um clichê.
- No que você acredita?
- Agora? Acredito que você deve estar doidão.
- Não me mataria se estivesse doidão. Poderia me arrepender depois.
- É, poderia.
- Sua voz é bonita. Você deve ser bonita. Já pensou em se matar?
- A bola da vez é a sua morte, não a minha.
- Pensou, não pensou?
- Sei lá, todo mundo pensa nisso uma vez na vida.
- Por que não se matou?
- Porque não queria morrer de verdade. E acho que você também não quer. Quem quer morrer não fica de conversa fiada ao telefone.
- Uma contradição.
- Quê?
- A vida. É uma contradição. A gente nunca sabe mesmo quando está vivo e quando já está morto.
- Não prefere falar de amenidades? Sei lá, filmes. Batman. Você viu Batman?
- Não gosta de falar disso, não é?
- Estou tentando te distrair. Sei lá, pra você ter uma pré-morte mais legal. Aliás, como pretende, desculpe, como vai se matar?
- Você vai saber. Leia os jornais amanhã.
- Por que me ligou, afinal?
- Precisava falar com alguém. Fico feliz que tenha sido você. Se não fosse me matar, te convidaria para um cinema. Ou para uma cerveja. Enfim, fica para a próxima. Vou nessa, se cuide. Obrigado pela conversa.

Ele desligou. Só ele: eu fiquei subitamente atônita, com o telefone na mão. Não podia retornar a ligação, não podia nada a não ser esperar. Esperar. Esperar. Esperar. A madrugada passou lenta, se arrastando, eu rolando na cama, com o telefone na mão. Sempre com o telefone na mão. No dia seguinte devorei os noticiários e jornais em busca de algum sinal: nada. Uma semana mais tarde encontraram o corpo de um homem boiando no rio, sem marcas de violência ou qualquer outro indicativo de homicídio – segundo as informações, provavelmente o homem se suicidada. Não me contive: chorei. Depois disso a vida quase voltou ao normal. Quase, pois eu não conseguia esquecer o telefonema nem me convencer de que, mesmo que quisesse, eu não poderia ter impedido – cada pessoa segue seu próprio destino: o meu era atender a um telefonema, o dele terminara naquele leito de rio. “Você parece legal”, eu me sentia péssima, de qualquer jeito.

Voltei a trabalhar no romance e tentei esquecer o episódio, embora volta e meia ele me voltasse à memória. E, numa noite em que as nuvens anunciavam uma chuva tão torrencial quanto à da noite em que ele telefonara, ouvi o toque insistente da campainha. “Algum chato”, pensei, enquanto me encaminhava para a porta e espiava através do olho mágico. Não havia ninguém. Entreabri a porta com cuidado e olhei através da pequena fresta: nada, a não ser um pequeno envelope pardo depositado sobre o batente da porta. Apanhei-o e me tranquei em casa novamente e, ainda de pé junto à entrada, rasguei uma das bordas, verifiquei o conteúdo e senti o coração bater de alívio e de felicidade – como tinha me encontrado? Não importava: eram duas entradas para o cinema, a última sessão daquela noite. E um bilhete: “desculpe, foi engano.”


sexta-feira, 7 de novembro de 2008

2/3 de História e Algumas Moedas



Esboço um poema de amor num guardanapo de papel sujo de batom, o meu – e minha boca, pouco a pouco, se purifica e volta a caber em mim, apesar destes olhos que não cabem mais e deste coração que nunca coube; é ele quem invariavelmente me leva pela mão, e o admiro tanto que não o desobedeço e nem o aborreço com perguntas. Ininteligíveis, a letra e eu. Ambos rascunhos, talvez. Na verdade não me entendo muito mas, se me entendesse, de fato não seria eu – se não me entendo é porque a cada dia abraço a opção de me transformar. Só quem é muito raso se compreende a fundo e consegue essa coisa a mim improvável que é se definir; prefiro não me negar o direito de me surpreender comigo mesma.

Ininteligíveis, eu a letra que se vai parindo trêmula sobre o papel meio branco, meio cor-de-poema-que-quer-nascer; deve ser a iminência de dar à luz esses versos que me estremece os dedos. Trêmula, esboço um poema de amor. Cinco linhas mal escritas: o que um dia eu disse se perdeu num tempo feito de alheamentos, o que eu não disse criou raiz e se dispersa entre os traços de tinta. E que coisa familiar, 1/3 da minha história cabe nessas cinco linhas – os outros 2/3 rodopiam incontinentes pela sala, de cabelos soltos, cunhando sóis nas moedas largadas sob a mesa. E nem me importo se essa improvisada dança de minhas histórias me arrebata o papel e a sobriedade: os versos ficam-me entre os dedos de uma mão, o amor entre os dedos da outra e breve estão os dois, amor e poesia, um para um, no mesmo copo. Bebo de uma só vez, sem tempo de respirar ou de voltar atrás.

E a sombra silenciosa que desliza aveludada pela parede se confunde com o cheiro do poema que não escrevi, mas que ainda assim perpetua versos dentro de mim.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Exercício Para Parar de Pensar

Das lembranças não havidas escorre um resto
de mim;
quase nulo, e pequeno.
Mas, astuto, se agiganta
e vira Eu completo e sem memória,
incoercível e largo Eu.
Escolho-me.


Soundtrack: Black Crows - Sometimes Salvation




Enquanto a memória das inexistências mina pelas torneiras abertas, desligo o telefone e o pensamento para que ninguém chame meu nome em vão – mas é impossível, ao menos hoje, arrancar de mim esse nome amargo pendurado nos lábios, e esses sons hostis cravados na minha língua. Então engulo as letras, e os cacos pontiagudos das palavras trituradas vão ferindo a garganta e regurgitando impacientes, e sempre me enchem a boca e o peito. Falar nunca é fácil. Enquanto o dia borra de tic-tac-tic-tac-tic-tac essa irritação zombeteira repousada sobre meu ventre e os segundos pulsam esparramados sobre o piso frio, quase esqueço. Quase, pois da minha vida inteira eu não me recordo mais e do que não vivi, eu me lembro. Eu me lembro, e como pode essa lembrança se impor assim tão nítida, teimosa e nítida, indesejada e nítida, esvaecendo com um único “click” minha resolução de não lembrar? Aqui estou “sssst, silêncio, beije a minha nuca, Esquecimento, eu te assusto?” – e o pensamento avança nesse desarranjo dual, sssst, click, cheio de vontade própria, eu acreditando e desacreditando nele – sou falha, eis a minha perfeição. Calar nunca é fácil: eu derramo o não-dito coração adentro, um dia me aquieto. Enquanto isso, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, perfilados, um a um, entre mim e a outra margem do som.


terça-feira, 4 de novembro de 2008

Enigma do Dia

Alguém já reparou que quando a gente propõe a verdade para determinados "uns" é como se para eles, muitas vezes, soasse algo do tipo "tire toda a sua roupa, fique completamente nu e passe horas a fio de pé e com os braços levantados sobre um pedestal do outro lado da rua"?

A verdade, para "uns", só não é mais assustadora que a morte. Ou é.


E não, isso não tem endereço certo. É só uma constatação, inaugurando a semana de (des)necessárias constatações.


domingo, 2 de novembro de 2008

Os Últimos Serão os Primeiros

Pois é, o primeiro post do mês é esse meme que me foi repassado pela Nêga. As regrinhas são: Passar para 5 pessoas; assim que responder me envie um comentário avisando; não esquecer que é um meme feito pelo Assuntos Assim.


1) A última pessoa com quem falou hoje: minha irmã Fernanda.

2) A última coisa que falou: Feeeeer, qual foi mesmo a última coisa que eu te falei???

3) O último pensamento: qual foi mesmo a última coisa que eu falei?

4) A última pessoa com que se reconciliou: G.

5) A última pessoa com quem brigou: G.

6) A última pessoa que falou de Deus pra você: minha mãe.

7) O último lugar em que você gostaria de estar: sete palmos abaixo da terra.

8) O último filme a que assistiu: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore (não, não é ele o G.). Sou a pessoa que mais assistiu a esse filme no mundo.

9) O último livro que leu ou que está lendo: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Autobiografia romanceada do lendário imperador romano, redigida em forma de cartas ao futuro imperador Marco Aurélio. Não é a primeira vez que o leio, e certamente não será a última: é um livro simplesmente apaixonante. LEIAM.

10) O último presente que ganhou: um porta CDs.

11) A última coisa que gostaria de estar fazendo: brigando. DE-TES-TO.

12) O último telefonema feito ou atendido no seu celular ou telefone: ex-marido.

13) O último conselho que deu e pra quem deu: para mim, tome uma atitude de uma vez por todas. Claro que eu não segui.

14) A última vez que chorou e por que: sábado. Porque assisti a Cinema Paradiso, porque reli a 4ª parte do livro, porque me deu saudade de um monte de gente que eu nunca mais vi e de outras que eu nunca vi e nem sei se vou ver, por pensar demais e agir de menos e porque eu estava mesmo exageradamente sensível (ou seja, eu chorei MUITO). E NÃO, NÃO ERA TPM.

15) O que faria hoje se fosse seu último dia de vida: um testamento declarando que aquele que tiver a péssima idéia de me fazer um velório será amaldiçoado para todo o sempre.


O meme eu repasso pra quem quiser fazer.

E muito obrigada à Nêga pelo Oscar, ao Paulo R. Diesel pelo selo Eu Recomendo Este Blog e ao Matthew pelo selo Este é um Blog Inteligente. Repasso a todos da vizinhança :)

Beijões!



segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Primazia

"Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água..."

Chico Buarque - Gota D'Água


Soundtrack: Dionne Warwick - Walk on By



Eu te amei com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas. Escancarei a nudez da minha alma diante dos teus olhos, te entreguei meu corpo de dama e meu cio de besta. Confessei-te meus segredos, adulterei minha pouca razão e desalinhei-a para caber sem temores entre as tuas carícias. Sim, eu rompi com todas as minhas premissas, porque te amei – e, porque te amei, morri e vivi desse amor tantas e tantas vezes, e em todas as vezes cri que fosse a última e me surpreendi ali, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo. Porque te amei.

E esse amor, onde ficou? Desalentado, esquecido atrás da porta, enquanto apagavas as luzes para reacender teus olhos em alguma esquina furtiva do teu labirinto de desejos, em algum encanto barato e fugaz. Perdido entre os cacos da última garrafa de vinho, um tanto ébrio, borrado ainda do violáceo dos teus beijos frios. Ressequido. Esse amor ficou vagando atônito, a passos pequenos, descrevendo círculos estéreis por entre os “não” que a tua inconstância deliberou cravar entre nós dois. Esse amor se desfez do abraço frouxo de amor que cinge uma inexistência e cruzou os braços – cruzou os braços. E amor de braços cruzados esquece de si, amor, ou se faz esquecer – porque vive de tempo presente, desentende, ignora o depois.

Esse amor não ficou, amor. Esse amor, aquele amor, se foi.

E tu? Por onde vais agora, sem vinho e sem esquinas?


domingo, 26 de outubro de 2008

Caro Desconhecido:


Escrito e endereçado a quem interessar possa,
na primeira manhã do primeiro inverno em que nevou flores.


Decidi que lhe escreverei cartas. Não me importa que não nos conheçamos; é a você mesmo que desejo escrever. Tampouco me incomoda não saber a sua história; ainda assim você saberá a minha. Em cada letra segue meu segredo mais bem guardado, minhas verdades respiradas, o calor das pontas dos meus dedos marcados pela tez das sensações impregnadas na minha íris. Uma história nem tão bonita, nem tão feia. Nem tão comum, nem tão extraordinária. Uma história nem tão uma, nem tão história, contada, sobretudo, nas pausas e nos hiatos onde pululam as palavras que não escrevi. Não sei se o endereço está correto mas, se nesse momento você estiver lendo essas linhas e tentando compreender o que se passa, significa que sim – é você a quem minhas palavras deveriam chegar, após se extraviarem de tantos silêncios. É assim: às vezes precisamos facilitar as coisas para que a vida se encarregue de nos levar a quem seja capaz de transformar signo em significância.

Escrever-lhe-ei uma carta por dia, sem data, sem remetente – um coração não cabe no tempo, e o tempo não cabe em nomes ou envelopes. Escreverei para falar de mim. E, quem sabe, de você; talvez lhe seja desconfortavelmente surpreendente perceber que somos tão iguais. Ou, talvez, lhe seja um alento. O que sei é que é a você, caro desconhecido, que desejo escrever essas cartas, embora não saiba o motivo pelo qual me é tão necessário e urgente que me conheça – talvez porque, quem sabe, será você a me reconhecer em meio à profusão de rostos que assomam à minha superfície em busca de existência e perenitude, caso um dia eu não me recorde mais de quem sou.


sábado, 25 de outubro de 2008

E Hoje, no Novas Visões...

OUTROS DIAS

Às vezes despertamos tarde demais para o fato de que algumas coisas não podem ser recuperadas. Tempo é uma delas; e nenhuma outra perda acontece de forma tão silenciosa, como se nada fosse. O tempo se dilui diante dos nossos olhos e só nos damos conta disso quando, entre surpresos e incrédulos, nos pegamos perguntando a nós mesmos onde foram parar aqueles dias em que a vida era quase leve.


Onde foram parar aqueles dias em que a vida era quase leve? Pessoas chegando, partindo, ficando, a gente correndo, amando, sofrendo, fazendo. Passando. Crescendo. Outra hora eu digo. Outra hora eu faço. Outra hora, que sabe-se lá onde foi parar. O Fulano que morreu, a Cicrana que casou, o filho do Beltrano, que nasceu no ano passado. O Beltrano. O ano passado. A camisa assinada no último dia de aula, há tanto tempo. Tanto tempo. A gente, onde a gente foi parar. (...)


Hoje, 25, é meu dia de bater ponto lá no Projeto Novas Visões. Dessa vez com uma cronicazinha despretensiosa sobre tempo e o que fazemos - ou deixamos de fazer - com ele.

O texto, na íntegra, pode ser conferido aqui (e agora sim, o link está correto). Nos vemos por lá :)

Beijão pra todo mundo e excelente fim de semana!


quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Infinitivo

"a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome"

Paulo Leminski



Gosto da noite, muito mais que do dia. Das verdades que brilham no escuro, desembaraçadas dos fogos-fátuos palavreados em escarcéu – e essa luminescência improvisada e nua me faz crer que é à noite que o sol verdadeiramente nasce. Um ou outro carro passa, uma ou outra pressa corre... E, exaustas, as evidências ariscas do dia findo escorregam pelas calçadas e bancos de praça, enquanto em cada canto alguém ressona à espera do dia seguinte – um desconhecido grávido de certezas de geometria poeticamente incerta.

Gosto da noite com suas lembranças claudicantes; com seus vazios trôpegos, repletos de faíscas de iminências. Com seus lares de janelas fechadas, onde um ou outro par de olhos abertos se demora fitando o nada em busca desse não-sei-o-quê tão bem guardado entre as estrelas – mas que sempre desliza por entre os arranha-céus e antenas de tevê para pousar nas mãos de quem o descobre lá, quieto e vivo. Um ou outro risco cresce, um ou outro riso esquece. Tudo mais é mudez pulsante, como letras deitadas num papel afagando a própria imensidão.

Gosto da noite com suas preces sussurradas, com seus túrgidos lenitivos, com seus infinitivos roucos desaguados entre o adormecer e o despertar. Com seus gerúndios: um casal se amando, uma porta se abrindo, ando, indo, onde – e nada do que se esconde nesse ir e vir é imune à comoção derramada por essa lua branca, branca e cristalizada, rasgando a hegemonia da escuridão. Talvez também eu tenha em mim uma lua branca, branca e cristalizada, comovendo as notas da minha própria respiração.


terça-feira, 21 de outubro de 2008

Tempo

Cada um tem o seu passado fechado em si,
tal como um livro que se conhece de cor,
livro de que os amigos apenas levam o título.

Virginia Woolf


Hoje penso nos planos que não quero fazer, nas memórias que não quero guardar, nos passos que calçaram meus pés e que nada tinham de meus. Penso no porvir, embora saiba que o porvir não existe e que tudo além desse momento é ilusório, e que o antes e depois são apenas pretexto para que eu persista na hesitação em reescrever-me neste exato minuto – o único fragmento de tempo que realmente me pertence.

Despeço-me de velhos conceitos. Dispo-me de arquétipos. Descontextualizo-me na tentativa de fazer jus à minha real forma e, assim, escapar das redundâncias que contrariam a delicada porém indiscutível objetividade da minha natureza. Permito-me não querer o óbvio, o fato consumado, o crível, a cara estereotipada das possibilidades restritas. E compreendo, acato meu direito de ser mutável – posto que as transformações são a única e real constância.

Hoje penso, apesar de pretender que meus pensamentos se esvaiam de mim como a água que se faz vapor para abandonar o corpo de um rio em um dia quente de verão. Satisfaz meu espírito apenas sentir. Perceber. Incorporar. Tatear-me em busca do ser que há tanto tenho buscado sem compreender que esteve sempre comigo, estremecer ante o impacto da minha existência no mundo, encantar-me com a harmonia das minhas imperfeições, tão preciosas por serem unicamente minhas. Encaixar-me na minha carne, essa carne que me pertence e a ninguém mais.

E é bom esse revisitar-me. E havia de ser neste minuto, neste segundo. É deliciosa e indiscutivelmente vital a sensação de alcançar a mim mesma em meio a todas as outras que me tornei e degustar o fato de que, a despeito da multiplicidade, ainda sou eu quem habita este corpo. E assim, à revelia do tempo que prossegue implacável em sua jornada infinita, me permito sorver, em longos e intermináveis goles, esse instante permeado de eternidades, essa irracionalidade voluntária repleta de uma serenidade feliz e indiferente a tudo mais que teima em escapar ao universo perfeito contido nesse agora.


E tem novidades lá pelo Espasmos de Riso, pessoas queridas - o primeiro post feito em dupla, dessa vez escrito por mim e pela dona Anne (imaginem o tamanho da confusão!!). Historinha de "Internete", dessa vez completamente inventada, nascida num dos nossos nada raros surtos emiessiênicos e transcrita na íntegra, sem retoques. Passem lá pra conferir, e divirtam-se!


Desconexões

"(..) os detalhes inconfundíveis lhe saltando aos olhos,
tomando corpo, criando covinha no queixo, barba
por fazer, camiseta branca, tatuagem no peito.

Sabe vontade? Além."

Flávia Brito - Correspondência



É em meio à penumbra do meu quarto escuro que sou capaz de divisar, nitidamente, os contornos do teu corpo... Minhas mãos, ávidas pelo encontro da tua pele quente, macia, desnuda de pudores, tateiam lânguidas o imenso espaço vazio em redor de mim – espaço que me cega, que me angustia, que me enlouquece por ostentar, diante dos meus olhos, essa tua ausência irrespirável.

Vejo teu peito nu, encoberto apenas pelas intenções de delícias sem hora, nem fim; vejo teus pêlos, teus poros, teu meio-sorriso se transformando, pouco a pouco, na boca que me beija e emudece meus fantasmas. E sinto teu gosto – esse gosto raro, febril, esse gosto unicamente teu de desejo e entrega sem defesas, esse gosto inviolável e puro de devaneio arrebatadoramente real.

São teus os olhos que aqui me despem com todo o ímpeto da tua vontade soberana. São teus os braços que aqui me enlaçam como serpentes transbordantes de cio... E sim, és tu quem me sente, quem me invade, quem me transporta inconsciente e submissa para o teu mundo de prazeres e fantasias, quem me faz rainha e escrava, quem incendeia e apazigua meu frágil corpo feminino, incandescente diante da tua urgência viril. E sinto, respiro, sorvo teu cheiro de sonho palpável, me embriago da tua presença etérea... E, quanto mais tenho de ti, mais busco, mais quero, mais e mais preciso.

E de repente me descubro perdida em minhas desconexões, em meus anseios e delírios noturnos; e minhas mãos, novamente, apenas podem tocar a escuridão, pois uma vez mais retorno à angustiante percepção de me saber aqui, sozinha, com os lábios ainda úmidos do teu beijo surreal... E com o corpo trêmulo e exausto me dou conta de não estar completamente só – pois tua lembrança, ainda que fugaz, permanece a velar meu sono como um anjo protetor... E sabendo-te aqui meus olhos se fecham, serenos, e adormeço em paz, como uma criança.



segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Na Veia

"F.: às vezes acho que a gente veio ao mundo ou com um
parafuso a menos, ou com um coração a mais, ou ambos, talvez...
P.: um coração a mais, que para o mundo é, de fato, um parafuso a menos...
F.: é verdade... sorte nossa: tanta coisa cabe em dois corações!"

Pequeno diálogo entre mim e Patrícia,
em uma de nossas muitas elucubrações
sobre sentimentos e suas (in)definições.




Sou daquele tipo de gente que só incorpora, intransitivamente. Vivo dessa absorção das coisas, desse admiti-las em mim ainda que tal simbiose não as torne minhas – e me torne intensamente delas. Por isso nunca gostei de despedidas: porque de alguma forma me tiram aquilo de que faço parte, e nesse ir-me um pouco a cada aceno último vou ficando aquém das minhas próprias histórias, das histórias que escrevi na pele com as tintas que minha alma produziu. Porque só incorporo, intransitivamente.

Por isso nunca escapo dessa coisa de sentir – e de tanto sentir, com tanto de mim, vou virando algo sempre a meio palmo de crescer e não caber mais em si, vou virando a iminência de um esgotamento que nunca se concretiza; incorporo e transformo tudo em condição de incorporar e incorporar e incorporar... E fico sentindo até sentimento virar palavra, e palavra assumir cor e sair rindo. Sabe quando a gente gargalha por dentro? É palavra sentida, virada em sorriso de alma, uma coisa que quem vê não entende muito bem mas que quando percebe já se deixou contagiar, que sorriso de alma faz cócegas nos braços da alma alheia, é assim sem cerimônia...

E, pensando bem, fazer cerimônia pra quê?




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*NOTINHAS*

* Hoje, segunda-feira, começo de semana, todo mundo devidamente de volta à rotina real e virtual... falando em virtual, a nossa Internet de todo santo dia é justamente a bola da vez lá no Coletivo, com um texto delicioso da Mirian Martin inaugurando a rodada. Recomendo e convido-os todos para essa viagem!

* E falando em recomendar, agradeço as palavras do Vinícius lá no Vômito Cultural - uma revista eletrônica comandada por gente jovem com curiosidades e assuntos pra todos os gostos - dirigidas a este blog aqui e à blogueira que vos escreve. Obrigada, rapaz! Quem não conhece passe lá pra conferir. Os meninos capricham :)

* Aos poucos conserto o estrago que fiz no template e reinsiro os links de todo mundo. Editar HTML vesga de sono dá nisso.


Beijos a todos e excelente semana!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Intermezzo Noturno

Publicado originalmente no blog Cotidianidades em um dia
perdido de agosto de 2007. Há muito mudei de endereço,
real e virtualmente. Mas a cidade, essa continua a mesma.

Seus fantasmas, infelizmente, também.



Era noite alta e eu ainda estava ali, sentada diante do computador, fitando pateticamente o documento em branco no qual eu havia escrito e deletado, incontáveis vezes, dezenas de inutilidades literárias. Depois de ouvir o repertório inteiro da Janis, eu já praticamente mergulhava, de cabeça, no desespero de um escritor que simplesmente não sabe o que escrever... Meu vazio mental, invariavelmente, me leva no mesmo rumo: uma xícara transbordante e quente de café. Diante desse pensamento convidativo e da minha momentânea incompetência criativa, me espreguicei languidamente como um felino e tomei o rumo da copa – já que a cabeça se recusava a funcionar, o paladar, ao menos, sairia no lucro.

Eu disse sair no lucro? Engano: para minha surpresa e indignação, não havia sequer um mísero pote de capuccino vagando pelo meu reino. Lembrei-me da loja de conveniência anexa ao posto de gasolina localizado em frente ao prédio onde moro; paciência, era sair no meio da madrugada para satisfazer minha vontade sobrenatural – afinal, não há empecilhos para deter um dileto e fervoroso apreciador de cafeína. Enfie-me na minha batida calça de moletom, tão cinza quanto o céu de uma cidade grande na hora do rush, arrumei os cabelos em um coque preguiçoso, enfiei uns trocados no bolso – o suficiente para comprar o que desejava, pois não pretendia ser chamariz para os gatunos notívagos – e parti em busca do meu tesouro. O frio da noite entorpecia meu corpo e aquecia ainda mais a vontade de uma bebida fumegante; apressei os passos e, quando já tocava a porta de vidro da loja, ouvi aquela voz.

- Dá uma moeda, tia.

Virei-me em câmera lenta; era um menino. A sujeira e o corpo mirrado tornavam impossível precisar a idade; porém, havia um quê de ladino nos olhos, alguma coisa sugerindo que eu não me deixasse enganar pelo aspecto frágil... ignorar seria a melhor opção – além do mais, eu só tinha dinheiro para o café. Fiz menção de entrar na loja. Ele foi rápido.

- Só uma moeda tia. Pra comer. Faz dois dias que eu não como nada.

Ele talvez não soubesse, mas havia acabado de enfiar o dedo na minha ferida de boa menina cristã. Minha mãe costumava dizer que não se deve negar comida pra ninguém... E, se ele realmente estava faminto como parecia, eu iria para o inferno de primeira classe e sem escalas caso negasse aquela bendita – ou maldita – moeda. Bosta.

- Escute: isso é fome mesmo ou você vai torrar a moeda comprando cigarro?

Ele me olhou quase com uma auréola de santidade.

- Eu juro, tia. Não quero cigarro, não. Faz dois dias que não como nem um sanduba. Minha barriga tá roncando, pega aqui, ó.

- Tá, tá. Não precisa exagerar. Mas se estiver com fome, mesmo, compro um lanche pra você – e eu confesso que esperava como réplica uma enxurrada de palavrões e xingamentos. Vi em seu rosto que não era exatamente o que ele pretendia, mas era a minha vez de dar o xeque-mate.

- É pegar ou largar.

Ele aquiesceu, por fim.

- Tá bom, tia...

- Então vamos ali no boteco do Careca. E pode parar com esse negócio de tia.

Ele me acompanhou com muita naturalidade; eu é que não me sentia nem um pouco à vontade com aquele acompanhante inusitado. “Se esse garoto estiver noiado, é capaz de me matar”. Pedi que o Careca lhe trouxesse um sanduíche de mortadela, mas o menino me interrompeu a frase na metade, “não tem arroz com feijão?” – e a ansiedade era gritante nos olhos dele. O dono do boteco sorriu, sem dizer nada, e se retirou como uma sombra, retornando, dentro de alguns minutos, com um prato considerável onde, quentinhos, arroz, feijão, bife e batata frita aguardavam serenamente o momento de serem devorados por aquela boquinha faminta.

- Sobrou um pouco do jantar, esquentei no microondas.

O dono do bar havia realmente se superado.

Se aquele garoto queria dinheiro para comprar cigarros, isso eu não soube e talvez não saiba nunca. O fato é que ele se atirou à refeição, a princípio um tanto constrangido, depois com um ímpeto que eu sequer havia imaginado. Enquanto o observava, senti um certo remorso pela comida que havia deixado sobre a mesa naquele mesmo dia, apenas por uma indisposição blasé. Não sei se percebeu ou se era simples vontade de puxar conversa; entre uma garfada e outra, ele, finalmente, voltou a usar a boca para falar.

- Qual o seu nome?

Apenas olhei. Inexplicavelmente eu não conseguia dizer nada.

- Não posso te chamar de tia, não é?

- Chame como quiser – e, nesse ponto, me surpreendi com o sorriso que começava a nascer nos meus lábios.

-Tá bom. Vou chamar você de Maria.

- Ok, Maria está ótimo. E o seu?

- Na rua me chamam de Robinho. Por causa do jogador, sabe. Quero ser jogador também – e ele dizia isso com um orgulho solene.

A conversa prosseguiu nesse ritmo. Não sabia o nome, nem a idade, nem quem eram os pais... Uma história comum, como a de tantos moleques que vivem como fantasmas pelas ruas da cidade. Mas, naquele momento, um daqueles fantasmas estava à minha frente materializado em um metro e meio de sujeira, penúria e cheiro de cola e abandono, devorando um prato de arroz, feijão, bife e batata frita que havia sido pago com os trocados do meu café. A refeição finalmente terminou; ele agradeceu, se despediu com um sorriso feliz e desapareceu na madrugada fria, tão silenciosamente quanto havia surgido. Ainda fiquei ali parada por alguns segundos; então respirei fundo, enfiei a mão nos bolsos agora vazios e voltei para meu apartamento.

O desejo de um café havia sumido. O de escrever, idem. A cabeça não estava mais vazia, contudo passara a acumular mais pensamentos do que eu poderia organizar. Nessa noite fui para cama me sentindo um pouco como aquele garoto de pele suja e idade indefinida, para quem a fome física era apenas mais uma entre tantas outras. Talvez não nos encontremos mais; porém, acredito que não nos esqueceremos um do outro, talvez até nos reconheçamos em alguma esquina dessa metrópole de fantasmas. E talvez eu até o convide para tomar um café comigo.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Wishlist

"Sonhar é acordar-se para dentro."

Mário Quintana




Ao invés de certezas, esperanças.

Aquele rastro doce que as coisas doces deixam mesmo quando chegam ao fim.

A lembrança delas na ponta da língua.

Uma saudade igualmente doce que venha e me ocupe toda a boca, e não enjoe nem arranhe meu peito de paladar apurado.

Um copo de absurdo por dia.

E o destino misterioso e surpreendente como um ventre grávido.

***

Há um rumor do lado de fora, percebo – é o meu coração que outra vez bate à minha porta...

(Acenda-me uma estrela e deite-a entre meus dedos, e não me acorde se eu dormir aqui.)



Pati: três pratos de trigo para três tigres e,
para nós, nosso copo diário de agás maiúsculos ;)

sábado, 11 de outubro de 2008

(...)

"(...) Amor é com quem me deito e deixo
montar
minhas coxas em forma de forquilha
e onde
amor abre caminho pelas minhas
águas."

Olga Savary - Nome




Minha idéia fixa é gastar meus lábios na tua saliva. Desagregar o tempo e reinventá-lo contado sem pressa nos teus dedos, nas pausas da tua respiração, nos hiatos das nossas insensatezes cometidas em nome das urgências da carne e dos anseios do espírito. Vandalizar essa distância que nos separa e reduzi-la a míseras descontinuidades, vestir meu corpo com a tua pele e umedecer-me do teu suor inquieto, morder lentamente cada um dos teus desejos. Enlaçar tuas vontades entre as minhas pernas, sincronizar tuas pulsações com o ritmo dos meus instintos de fêmea. Beber da tua boca o gosto disrítmico e adocicado da tua entrega, te receber em mim e ser o universo onde repousas tua languidez, a paz que sobrevém ao caos da colisão entre as nossas delícias. Tripudiar sobre a lógica – é tão simples e óbvio ocuparmos o mesmo lugar no espaço, porque o mundo gira diferente na tua íris. Banir as solenidades vocabulares e dizer-me inteira a ti na linguagem dos meus impulsos, e me responda, como é que se diz eu te amo sem ser clichê?

As minhas reticências te gritam, indiscretas.