sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Condição

As vezes em que me sinto mulher de forma mais notável nada têm a ver com um corpo masculino biblicamente unido ao meu. São repentes revestidos de razões insidiosas que surgem se impondo sobre as previsibilidades todas, e cuja principal prerrogativa é a maestria em transcender o banal – e, nessas horas, me sinto completa e desmedidamente mulher. Fêmea.



Nesses instantes não temo essa misteriosa condição feminina, e chego a quase compreendê-la – e, ainda que não a desvende claramente, emudeço os questionamentos e a ela me entrego, transfigurada em docilidade febril, e sinto seus assomos a me fervilharem o sangue enquanto meus olhos, fixos no espelho, acompanham a camisola de seda percorrendo meu corpo rumo ao chão em uma carícia trêmula de mãos de amante, ou quando me surpreendo a dilacerar os descabimentos e incompreensões com toda a indisciplina dos meus instintos e das minhas unhas vermelho-escuro. E a sinto no simples arfar do peito, no eriçar dos pêlos, nas minhas gotas que me encharcam a roupa e deixam rastros cálidos de insensatez sob meus pés nus durante esses arroubos deliciosamente imprevisíveis.



Nesses instantes – em que me desligo, destituída de culpas ou consciências, de quaisquer premeditações e moralismos para apenas gozar a languidez dos mistérios deste sexo tão singular na intimidade do meu espírito – ignoro tudo que não seja essa feminilidade visceral e selvagem, e me deixo possuir, anônima, inteira, pelo seu despudor sacrossanto e incoercível, pela sua fúria mansa de ingenuidade diabolicamente despretensiosa. E não raciocino, e não me renego, e não me retenho: apenas sinto, ilimitada e veemente, a explosão devastadora desse estado inexplicável, causa e efeito da minha alma de mulher.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Parto



Nasci. De um nascimento que nada tem a ver com a fragilidade exausta e ensangüentada do meu corpo diminuto desligando-se do santuário que o resguardara durante nove meses. Vim ao mundo em hora tão diversa, e imprevista, e insuspeita, que não se me ouviu o choro quando este soou pela primeira vez.

Vim ao mundo assim, me insinuando nele e me apropriando de suas entranhas – e também houve sangue e dor, e a ruptura do cordão foi brusca e definitiva, e grande foi o meu assombro diante dessa existência tão repentina. Maior, porém, foi o encanto, o delicioso e sublime encanto de me perceber ali, viva, gritante, aguda, dona de um pulsar absoluta e genuinamente meu, de um misterioso fôlego que me transcendia os pulmões para inundar todos os meus focos de carne. Surpreendi-me sedenta, faminta de mim, invadida pela sede e pela fome que despertavam avassaladoras de uma quiescência inacreditavelmente longa – e me saciei, ávida, na fonte imaterial dos meus desejos, que jorravam pródigos diante dos meus olhos recém abertos para a luz.

E era bom sentir, tocar, saber-me ser. Era bom o gosto de vida impregnando a boca que se abria no afã de engolir o mundo, o clamor do meu ventre ansioso por gerá-lo, dessa vez à minha imagem e semelhança. Era quente e arrebatadora a luz que cegava meus olhos e os despertava para todas as visões até então não mais que imaginadas, sonhadas, sentidas. Era bom.

Nasci, enfim. Nasci no exato instante em que descobri a mim mesma.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Mulheres Más

(...) Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave. (...)

Carlos Drummond de Andrade - Receita de Mulher

Ao som de The Gentle Waves - Pretty Things



Mulheres, definitivamente, não são todas iguais; embora criadas da mesma costela de Adão, existem com características várias, cada qual com suas peculiaridades. Há, contudo, duas categorias especialmente notáveis: as mulheres boas e as mulheres más.

Mulheres más não são necessariamente malvadas. Tampouco são más mulheres. Mulheres más apenas vêm ao mundo com a difícil missão de não serem as boazinhas das histórias. Missão árdua, é bem verdade, mas, assim mesmo, fascinante – uma vez que a tenha conhecido, você jamais esquecerá uma mulher má.

Mulheres más não cedem; concedem. Não existem, vivem. Não duvidam, pagam pra ver. Não estão sempre a cobrir de mimos e agrados, nem a distribuir sorrisos, nem a dizer amenidades, nem a medir palavras. Elas mimam, agradam, sorriem e dizem na exata medida de sua vontade soberana. Mulheres más não falam; fazem-se ouvir – ainda que sua voz seja o mais absoluto silêncio.

Mulheres más não são do tipo que só diz “sim”. Ao contrário, são más justamente pela intuitiva maestria em proferir um “não” – seja ele dito sob tempestades e trovoadas ou com a suavidade de um flautista. Jamais desagradam a si mesmas para agradar aos outros. Não aparentam; são. Persuasivas, sedutoras, misteriosas, encantadora e indiscutivelmente feiticeiras.

Mulheres más não fogem à luta; matam um leão por dia. São gigantes pela própria natureza disfarçados de criaturas frágeis e delicadas, o impávido colosso sob a doce aparência da mãe gentil. Sofrem, choram, se desesperam, mas, ao contrário das boazinhas, são como a fênix: um piscar de olhos e lá estão elas a renascer das próprias cinzas. Superlativamente amadas ou odiadas, o fato é que não se fica indiferente frente a uma dessas criaturas singulares.

Mulheres más nascem e morrem como todas as outras porém, diferentemente de muitas, espraiam suas sementes ao longo do caminho que existe entre nascer e morrer. São mães, filhas, esposas, senhoras, meninas, pobres, ricas, letradas, ignorantes, brancas, negras, amarelas, Marias, Isauras, Joanas, Fulanas. Más – não pelo que lhes vai no coração, que é de ouro; más, pela audácia em desafiar os pobres tolos que insistem na vã tarefa de tentar lhes minar as forças, tirar o brilho, negar o valor. Mulheres más talvez não saibam qual o caminho que conduz ao céu. Mas o da felicidade, certamente, elas conhecem.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Up Date - Meme do Desktop e Selo Inaugural

Quem tem amigos não morre pagão.







Na minha primeira semana aqui na casa nova, já ganhei presente e meme. O meme do Desktop veio do Heliarly - um dos caras mais legais e divertidos que conheci na blogosfera (e que tão gentilmente fez o banner deste blog - obrigada, garoto!), dono de um blog maneiríssimo, e que espero um dia ter a oportunidade de conhecer pessoalmente. O negócio é dar um print screen na área de trabalho e mostrar a imagem que dá o ar da graça assim que ligamos o PC. A minha é essa aí, ó. E quem me chamar de narcisista vai levar um beliscão...




O presente é o primeiro selo ganho pelo Sabe de uma Coisa?, e veio do R. Lima - que como o Heliarly, também virou um amigo "emiessiênico", tem um blog muitíssimo bem cuidado e está prestes a virar meu cicerone no carnaval de Salvador (hehehe)... Agora o Sabe de uma Coisa? é um Blog Cabeça - nas palavras do R., porque "essa aí não adianta mudar de casa... leva sempre com ela o sentido maior. Suas palavras transformam uma ideologia em pura crença". R., muito obrigada pela indicação, pela lembrança, por essa justificativa linda e pela amizade.



Tanto o selo quanto o meme vão respectivamente para Anne, Mila, Edu, Van e Paulinha - pessoas que eu adoro, em cujos blogs bato ponto quase que diariamente e que devem ter uns desktops pra lá de interessantes (hehehe)...


Beijos e ótima semana a todos!

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Correnteza

Para Van - música que fala por si.
Ao som de Van Luchiari - Veja só!








Abominou a concretude da forma a encarcerar a fluidez do espírito no exato instante em que nasceu para si. Imprescindia de seguir, de ultrapassar as medianias e se estender sobre o leito de sua vida sem hesitar ante o confronto inevitável com as pedras que se esforçavam para lhe frear o ímpeto. De tênue frêmito se transmutou em existência caudalosa, destemida, crescente sobre suas próprias margens, frágeis anteparos diante daquela ânsia em preencher, absoluta, os caminhos adiante.
Fez do próprio som efígie, o verde dos olhos derramando intenções níveas, a alma brotando aos borbotões da garganta e do peito, incontinente, audaz, esvaída na voz que se impunha sobre o corpo. Irrompeu em torrentes inundando de si a secura crispada do solo sob seus pés, e canalizou o próprio ser em direção ao mundo que fertilizara, e se volatilizou, e se condensou. E choveu - incontinente, cíclica.
E, embora lhe fosse possível, não se esquivou ao próprio curso, e a ele se entregou ainda que o soubesse incógnita. A ele se doou corrente, límpida, desembocando constante e plena nos estuários da vida. E rompeu barreiras, sedimentária de sonhos irrepresáveis, e se atirou ao seu destino de verso. E foi, inteira. Nascente. Oceano.
Edu e Van... obrigada por me ajudarem a vencer a batalha contra esse player (rsrs)... sem vocês, meu post ficaria incompleto. Obrigada!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

De Onde Vem o Tiro

“Quer dizer então, Basil, que, para você,
Deus é o único capaz de ver a alma?
Pois puxe a cortina, e verá minh’alma.”

(Dorian Gray em "O Retrato de Dorian Gray" - Oscar Wilde)


Ao som de Simpathy for the Devil - The Rolling Stones

Traição. Do latim traditione – literalmente traduzido como entrega – essa palavrinha foi agraciada com a desagradável incumbência de verbalizar a violação da confiança alheia, coisa que existe desde que o mundo é mundo e que tem a camaleônica capacidade de se personificar sob as mais diversas e insuspeitas formas. Tome-se como exemplo a tal serpente do jardim do Éden, aquele réptil malicioso e escorregadio de discurso aparentemente inocente que, se valendo da singeleza rubra e suculenta de uma humilde maçã, provocou todo o furdunço que resultou na famigerada expulsão de Adão e Eva do paraíso – e, por tabela, toda a humanidade foi despejada dos domínios paradisíacos por conta dessa cobra de espécie desconhecida, mas que, sem sombra de dúvida, era uma completa víbora.

Ledo engano, porém, supor que apenas criaturas assumidamente venenosas dispõem de prerrogativas como presas peçonhentas e bote certeiro. Há traidores acima de qualquer suspeita – haja vista o ataque de Caim, a tesoura de Dalila, a punhalada de Brutus, o beijo de Iscariotis, a pulada de cerca do Sr. Almeida. Há traições para todos os gostos – ou, mais apropriadamente, para todos os desgostos. A pergunta que não quer calar é: o que leva alguém a cometer uma traição? Inveja? Despeito? Desamor? Raiva? Ressentimento? Furor sexual? Ambição? Cinco minutos de estupidez? Cupidez? Questão difícil, porém nem tanto se for analisada sob um ângulo menos emocional e mais racional. Não há dúvida de que todos esses sentimentos “pouco simpáticos” estão envolvidos na gênese da traição mas, partindo do pressuposto de que só é possível ser traído por alguém em quem se confia, a raiz, o cerne, o berço esplêndido desta é, inquestionavelmente, a leviandade.

O leviano transcende essas nódoas da natureza humana. Não precisa ser raivoso, nem ressentido, nem despeitado, nem estar de olho nos peitos da vizinha da frente. Bastam-lhe o caráter turvo e a personalidade adunca. Traz em si a irresponsabilidade inata e destituída de culpas, a incapacidade genuína de se ater aos vínculos e aos sentimentos alheios. A traição vira um mal menor diante da possibilidade de satisfazer seus anseios na exata medida de sua vontade. Há que se diferenciar, no entanto, o leviano puro e simples daquele sujeito cuja consciência do próprio erro, muitas vezes, é o bastante para redimi-lo: ao contrário deste, o leviano jamais se arrepende.

E justiça seja feita: ah, criaturinha difícil de identificar. Ninguém traz na testa inscrições como “aqui há um lobo em pele de cordeiro” ou “afasta de ti esse cálice” – e, se fosse mesmo o caso, talvez esses alertas vermelhos tivessem justamente o efeito contrário, pois a curiosidade humana muitas vezes suplanta o instinto de auto-preservação. Traições existem e continuarão a existir, sem que, na maioria das vezes, se possa antecipar de onde vem o tiro. O negócio é estar “atento e forte”, como já dizia Caetano Veloso, e adotar um desconfiômetro de gato escaldado – aquele mesmo, que tem medo de água fria. E quem nunca teve seu Iscariotis particular que atire a primeira pedra.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Identidade

Ano novo, ainda eu, embora outra.
Ao som de Riders on the Storm - The Doors
Sigo. Distraio o mundo, lhe imprimo minhas pegadas durante meu caminhar silenciosamente turbulento sobre as águas do meu mar interior. Persisto vento, redemoinho, tempestade, pois, sim, sou olho e alma de furacão, força da natureza espraiando-se em ondas indomadas, violentamente arrebatadas pelo anseio de tudo tocar, sentir, possuir. Sou além de mim e me transbordo, incontida, por todos os poros, e assim me agiganto, me reconheço, me reencontro. Sou além em mim.

Beijo meus medos em despedida e prossigo, olhos fixos em meu horizonte interminável de possibilidades, corpo liberto e fluido entregue ao balé desconexo dos segundos, alma buscando-se ávida, imperecível, em meio à significância ilógica da vida, em meio às insensatezes e incompletudes do destino que traço nas linhas das minhas mãos. E, embora múltipla, não renego minha identidade, e faço desta pão e vinho para celebrar a comunhão com as verdades insofismáveis que me afloram à pele. Esgoto-me, e me renovo de meu próprio fim – pois trago, incrustado nas minhas intuições, o gérmen da minha fortaleza.

Invado-me; e me desafio passeando de olhos fechados por minhas beiras de precipício, e ignoro a iminência da queda, e me refaço nessa incursão vertiginosa em meus labirintos, e me permito ser Sol e Ícaro, cuidando para que meu calor não me derreta a cera das asas imaginárias tecidas, dia após dia, com retalhos cuidadosamente recortados dos meus quereres – sem os quais inexisto, sem os quais me reduziria à inexatidão de barro cujo sopro vital lhe foi negado. E me catapulto mais e mais para essa existência superlativa e incondicional, destituída de quiçás e porquês, fundamentada unicamente no desejo de ser, incontestável e desmedidamente, quimera, absurdo, anseio, sangue, célula, universo. Eu.

Cumpro-me.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008