sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Engolidor de Sonhos

Onde os seus sonhos vão parar?

Soundtrack: Smashing Pumpkins - Tonight, Tonight




- Eu não queria acordá-la mas a senhora sabe como é: se a gente não chamar o doutor eles ficam nervosos e aí, bem, e ele trouxe a família toda, a senhora sabe como é esse tipo de paciente...

Saber, saber, eu não sabia. A mensagem subliminar no rosto da técnica de enfermagem, para mim, era quase esfíngica: meio ressabiada, meio assustada – e o ligeiro ar de riso contido seria real ou mera e capciosa invenção da minha cabeça sonolenta? Olhei no relógio: quinze para as quatro. Madrugada alta, gelada. Densa. Dessas em que a última coisa que se pensa em fazer é levantar da cama para ir a um hospital, só em caso de morte iminente e olhe lá. Se ele estava ali – e com a família toda – só poderia ser mesmo uma intercorrência que merecesse a minha atenção. Calcei os sapatos, arrumei os cabelos num coque e, em companhia da técnica, desbravei os então silenciosos corredores do Pronto Atendimento até o consultório 2. O que era silêncio absoluto principiou a virar um burburinho que logo se transformou em uma sucessão de vozes atropeladas, femininas e masculinas, enoveladas em um sem-fim de “ai” e “ui” e “oh” e “aaaah” cujo nascedouro era uma aglomeração de cinco ou seis parentes desesperados em volta de um homem cuja aparência, cansada, fazia aparentar bem mais que os 36 anos informados na ficha de admissão. O homem, ofegante, com a mão sofregamente massageando o lado esquerdo do tórax e com o rosto contraído de aflição, se sentara na cadeira em frente à minha mesa e era abanado freneticamente por uma senhora corpulenta que depois se identificou como “a irmã” e desatou a dissecar o mal-estar do rapaz; pedi delicadamente que o deixasse falar e, quando as vozes sossegaram, ele finalmente respirou fundo como se para tomar fôlego e disse:

- Ah, doutora. É um negócio aqui no peito, sabe? Uma coisa. Uma coisa no peito, uma coisa.

Suspirei. Mais um para testar meus conhecimentos em “coisologia”.

- Uma coisa no peito?
- É.
- E como é essa coisa? Aponta para mim onde fica.
- Aqui.
- Ok. E como é a coisa?
- Ah, doutora, é assim um negócio, me tranca o peito e faz uma bola que vai rasgando entre as costelas, sabe?
- Não, ainda não sei. É uma pontada? Uma latejada, uma dor cansada, o que é?
- Não é dor, doutora. É uma coisa, uma coisa.
- Tá bem, uma “coisa”. Certo. Mas como foi que a “coisa” começou?

Nesse momento todos se entreolharam. O rapaz ficou em silêncio. A “irmã” fez menção de falar, mas antes que pudesse abrir a boca pedi que aguardassem do lado de fora enquanto eu colhia a história. Quando finalmente ficamos a sós e fechei a porta, ele deu um suspiro de alívio, me fitou diretamente nos olhos e soltou a bomba.

- É que foi assim: eu estava dormindo, e sonhando. E aí de repente, minhanoss’inhora... uma coisa, doutora! Eu senti aquela bola descendo... e o sonho foi parar no estômago.
- Hum?!
- O sonho, doutora. Eu engoli.
- O que foi que você comeu no jantar?
- Não foi o jantar. Foi o sonho.
- Um sonho recheado, certo? Desses de padaria?
- Não, doutora. Desses que a gente sonha.

Meu Deus. Eu, que pensava já ter ouvido de tudo, não estava preparada para aquilo.

- E sonhou com o que?
- Não me lembro.

Era preciso ser profissional, mas eu não lembrava de ter lido em lugar nenhum qual era a conduta a ser adotada em caso de sonhos acidentalmente deglutidos. O que é que se faz quando alguém engole um sonho e o danado, imprudente, vai parar justamente no estômago? Antiácido? Sal de frutas? Lavagem gástrica? Procinético e laxativos, para o sonho desentalar e sair sozinho pelas vias naturais? Esperar passar? Vai saber! Engolir o espanto, executar o exame físico e continuar tentando identificar qual era o problema dele era o tudo o que eu podia fazer no momento.

- Você tem gastrite?
- Não, senhora.
- Problema de coração? Pressão alta? Diabetes?
- Não, senhora.
- Toma algum remédio?
- Não sou louco.
- Não disse que é.
- Mas pensou. Desculpe.
- Na boa. Você toma?
- Não.
- Teve algum aborrecimento?
- Não.
- Isso já aconteceu antes?
- Com sonho sonhado, foi a primeira vez.

Larguei o estetoscópio sobre a mesa e decidi prescrever um antipsicótico, mas a caneta vacilou sobre o papel – ou fui eu que vacilei? Fosse como fosse, ele percebeu, e na sua voz transparecia um quê de orgulho ferido.

- A senhora não está me acreditando. Estou lhe dizendo, engoli um sonho. E estou com uma coisa no peito e eu só queria que a senhora me ajudasse a fazer isso passar.

Ele me olhava com os olhos muito abertos. E eu, não sei bem o porquê, nessa troca de olhares – ou melhor, nessa súbita invasão de mim pela angústia daquele homem que tão sinceramente procurava alívio para o seu mal – comecei a acreditar que ele, por que não?, havia sim engolido um sonho, eu que de repente me lembrava em cores vivas dos muitos sonhos que também engolira, acidentalmente ou nem tanto, ao longo da vida. E agora eu entendia, entendia perfeitamente. Sonho engolido faz um mal danado – sonho é pra ser sonhado até o fim, ora; sonho engolido, não vivido, só pode mesmo fazer mal à saúde. Eu não podia tirar o sonho de lá: o homem teria de digeri-lo até que não houvesse lembrança dele, ou que lhe nascesse outro sonho na cabeça. Mas eu podia tentar explicar a ele o jeito mais ameno, já que, tantas vezes, passara pela mesma experiência terrível. O que se sucedeu não me compete contar aqui; o fato é que ele melhorou e deixou o consultório bem mais aliviado e com um sorriso largo no “muito obrigado” repetido umas três ou quatro vezes enquanto ele percorria o caminho até a porta de saída, acompanhado por sua comitiva.

Voltei para o dormitório pensando no engolidor de sonhos. Um homem com "uma coisa no peito". Que sonho afinal fora aquele que, ao ser interrompido, provocara tamanho mal-estar? Será que ele, um dia, finalmente o sonharia inteiro ou o sonho permaneceria eternamente a mesma vagueza interminada e abrupta, translúcida, para sempre perdida perdida a meio caminho entre corpo e espírito? Há tantos sonhos que nascem com esse destino triste, e há tanto males nascidos dessa condição. Engolidores de sonhos, quem diria. “Onirófagos”. Talvez no dia em que alguém se dedicar a escrever um Tratado Geral Sobre os Males da Alma essa curiosa onirofagia seja finalmente compreendida e adequadamente diagnosticada, quem sabe até combatida profilaticamente – porque o tratamento, algo me diz que esse sempre será difícil: engolir sonhos, definitivamente, é prejudicial à saúde. Madrugada alta, gelada, densa. Apaguei as luzes e espichei o corpo sobre a cama com a cabeça cheia de ideias e uma estranha comichão no peito, deitei a cabeça no travesseiro e, instintivamente, adormeci.


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Queridos meus: por mais estranho que pareça, esse conto foi construído a partir de um relato real, colhido em um dos meus plantões de urgência e emergência. Agradeço aqui a um certo jornalista de Minas Gerais que, em uma conversa despretensiosa, me fez ver o quanto de lirismo existia na história. O próximo post que vocês lerão por aqui também é fruto das descobertas que tenho feito na minha vida nova no Paraná - e nele, lhes apresentarei uma pessoa muito especial. :)

Beijos!


sábado, 21 de fevereiro de 2009

Espelho

Soundtrack: The Beatles - Something



E eu não sei quantas vezes meu coração bateu naquele meio segundo, mas nele cabia o dia inteiro e todas as faces que eu vi debruçadas no sobressalto das minhas quase-idas - eu que quase fui tantas vezes e em todas elas me vi fugindo de mim e agora me encontro, e me vejo, e estou comigo e tão docemente me faço companhia quando o mundo se afasta, o mundo não para quieto e veja bem, eu também vivo ciclando interminada e excêntrica. Eu tentei ser fraca e apagar de mim os vícios de superfície mas não sei viver da perfeição, e voltei a ser forte e rasguei com as unhas as virtudes que não eram minhas. Eu piso descalça sobre esses cacos e não mais me contamino: a minha pele é feita das ideias roubadas a esmo em alguma noite estranha, lançadas como semente agonizante numa vontade grávida, é assim a minha pele, se regenera e ignora as velhas feridas.

Ah, as minhas quase-idas. Quando deixei partir o que um dia cri que me fazia viver, foi que vivi.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Carta Para Minha Mãe

"Te guardei nove meses dentro de mim.
Te desejei... te planejei... e, enfim, você chegou.
Te vejo nos teus dez anos de idade e vejo agora
que meu sonho é uma doce, bela realidade:
sou sua mãe.
E te desejo um futuro num mundo melhor,
onde os homens se amem bem mais e
onde você também tenha direito ao seu espaço,
onde você possa ser feliz
com suas esperanças e realizações.
Seja feliz, minha filha.
Todo amor de sua mãe,
Graça Brito. "


Escrito pela minha minha mãe há 20 anos
numa página de diário que me acompanha vida afora,
porque carrego o amor como amuleto.


Soudtrack: Elis - Como Nossos Pais

Oi, mãe.

Não se preocupe comigo, cheguei bem. A viagem foi longa e cansativa, mas você conhece a sua filha e sabe que ela aguenta qualquer tranco, a sua filha aprendeu direitinho as lições que você ensinou – a sua filha só não aprendeu ainda a contar moedas e a não aceitar doces de estranhos mas um dia, quem sabe, ela aprende.

Eu juro que estou me alimentando direito e cuidando de mim e das minhas coisas como você recomendou, você ficaria orgulhosa de me ver, tenho certeza, nem pareço aquela coisica destrambelhada que só não largava a cabeça pelo meio da casa porque está grudada no pescoço, e que esquecia de comer e trocava o dia pela noite, agora até dormir eu durmo. E vou lhe dizer uma coisa, a senhora deve ter muito prestígio lá com Deus: ficaria feliz em ver o quanto estou sendo bem tratada, as pessoas todas são muito gentis e me ajudam de um jeito que só você vendo mesmo, mãe, contando ninguém acredita, mas eu digo pra você, eu sei que cada uma dessas mãos que me afaga é você cuidando de mim. Eu sei. Eu sinto, eu sinto você aqui comigo, mãe, segurando a minha mão pelas ruas dessa cidade linda. Aqui é lindo, mas aí é muito mais bonito e sabe por quê? Porque aí tem você, e eu sinto tanta falta de olhar para o seu rosto miúdo, mãe, eu sinto tanta falta, e nessas horas eu percebo o quanto estou longe de casa e quase me desespero e não consigo não chorar, e me sinto tão, tão pequena. Eu sinto falta do seu radinho ligado todas as manhãs e do pleque-pleque-pleque macio e ritmado dos seus chinelos, do seu cheirinho bom de lavanda, mãe, e até das coisas que eu pensava que não gostava mas que descobri que fazem parte do amor imenso que eu carrego por você nesse peito meu que é chão de fazer amor crescer. Eu me sinto tão pequena, mas aí eu me lembro do quanto você é grande e entendo que não posso ser pequena sendo você gigante assim, e é quando crio forças pra me agigantar também.

E há tanta coisa ainda que eu queria dizer, mãe, mas você conhece a sua filha: sabe que ela, nessas horas, tropeça nos próprios sentimentos e o que deveria ser palavra vira uma boca muda e dois olhos úmidos, eu queria mesmo te abraçar e aí, eu sei, você entenderia tudo que eu estou sentindo. Mas não se preocupe, a sua filha está bem e feliz, e cheia de novidades e surpresas, e de histórias também. Eu já conheço muita gente, você sabe, eu falo muito, e o trabalho é tão bom que nem vejo o tempo passar, e aqui é bem diferente, mas veja só!, é ao mesmo tempo tão parecido com a nossa cidade... e tomei chimarrão e comi umas coisas que não sei o nome, mas vou descobrir pra lhe contar. Essa é uma fase de descobertas, mãe, e você sabe: a sua filha não tem medo de nada e aguenta qualquer tranco. Ainda não sei se esse aqui é o meu lugar, mas sei que algo me trouxe para essa terra e eu preciso descobrir por quê, e é por isso que eu não vou voltar, mãe. Eu vou ficar aqui, mas cada dia que estiver aqui eu vou estar aí também. Porque o mundo é grande, mãe, mas eu sou maior.

A benção, mãezinha. Amo você.

Todos os beijos do mundo.