terça-feira, 17 de agosto de 2010

Carta a Samuel



Oi, filho.

Eu gostaria de ter-lhe escrito esta carta há mais tempo; desde que soube que você, meu sonho mais bonito e mais ansiosamente sonhado, finalmente, passara a existir. Algumas coisas, no entanto, acabaram por me atropelar e fui involuntariamente protelando a planejada cartinha. Perdoe o relaxamento da sua mãe. Com o tempo, meu querido, você perceberá que essa sua mãe é mesmo assim: meio com a cabeça em todos os lugares, meio em lugar nenhum, tanta coisa para fazer nesse mundo que você ainda não conhece mas que já o espera como se fosse a sua chegada o sentido de tudo que carece de fazer sentido, é assim que parece ser ao menos dentro do coração da sua mãe. Não se assuste com as confusões que este mundo, provavelmente, trará à sua cabecinha: à primeira vista ele parecerá estranho e difícil, mas haverá muita gente ao seu lado para lhe mostrar que, apesar de estranho e difícil, esse mundo o espera com muito amor. Não tenha medo.

A sua mãe, meu querido, veja que coisa, nascerá junto com você; a sua mãe, até hoje, era apenas uma menina crescida, sem grandes pretensões e responsabilidades. É você quem a está transformando na mulher que ela sempre acreditou que fosse capaz de ser. Seja paciente com ela. Não ria do jeito desajeitado que ela tem de demonstrar amor. Ou melhor, ria: a sua mãe, certamente, rirá junto com você e será ainda mais feliz nesse mágico instante de descontração e cumplicidade. A sua mãe espera por você como quem espera pelo momento em que nós, pobres seres humanos, frágeis, fugazes seres humanos, nos damos conta de que tudo o que vivemos, e tivemos, e sofremos nessa vida valeu a pena. E tudo valeu a pena, meu querido, por você.


Amor, da sua mãe.


sábado, 7 de agosto de 2010

Segundo Domingo de Agosto


Assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido.

Soundtrack: Bird York - In The Deep




- Oi, mãe.

O filho de Luci a desperta com um beijo, já esquecido da sensação estranha da véspera. Era mais difícil quando criança; depois entendeu que Luci era mãe pai, e duas vezes cada um – ela tinha trauma de parto e nem a análise a encorajara a gerar uma criança mas tinha instinto de mãe, seu amor gerara aquele seu filho. O menino era ainda piá que mal sustentava as pernas e já sabia que seu primeiro lar não fora o corpo de Luci, mas que o lar definitivo seria para sempre ao lado dela. Sabia-se amado, piá de sorte. Foi na escola que descobriu que, além de mãe, existia aquilo de pai, ele que até ali acreditava que pai era só Deus, que ele nunca tinha visto mas Luci afirmava que Deus existia e ele não duvidava, Luci não mentia. Só que havia para cada menino um homem de carne e osso que ele via e os meninos gostavam e ficavam orgulhosos exibindo aqueles pais que não eram Deus mas que os levavam pela mão de volta para casa, ele se sentia diferente. Depois, muitos anos depois, entendeu. Era mesmo diferente, seu pai era uma mulher, era também Luci, pai homem fazia falta e sempre ia fazer, mas Luci era Luci e pronto. O filho de Luci a desperta com um beijo e lhe prepara o café da manhã, e lhe entrega o presente cuidadosamente embrulhado em papel colorido e atado com fita de cetim, “feliz Dia dos Pais, mãe”. Sabia-se amado, piá de sorte.

Na casa da avó, Victor assiste aos desenhos animados esparramado no tapete da sala, com os pezinhos descalços aproveitando o dia morno, esquecidos de que ainda era inverno. O pai leva-lhe um pedaço de bolo e instintivamente se detém a alguns passos para observar o menino. Conheciam-se há poucas semanas. Não fora fácil aceitar o fato de que ele era, realmente, seu filho, esperara mesmo que o resultado do teste de paternidade fosse negativo; o primeiro encontro entre ambos não havia sido muito confortável, o menino se atirara no seu colo e ele se sentia avesso para abrir-lhe os braços, era uma completa desconhecida aquela criança. Victor. Durante cinco anos só conhecia dele o nome. O menino parecia não se importar com as esquivas do pai; contava histórias, inventava passeios, perguntava coisas que ele fingia não ouvir ou respondia monossilabicamente. Não era nada fácil amar um desconhecido. Na noite daquele primeiro dia, foi até à varanda sozinho para respirar um pouco. Perdeu a noção de quanto tempo ficou por ali; só se recobrou quando percebeu Victor parado a sua frente, os olhos graúdos sob cílios compridos a analisá-lo demoradamente. Quis levantar, mas o menino estendeu as mãos – tão iguais às suas! – e tocou a barba crescida do pai, que permanecia petrificado, por alguns segundos. Em seguida, se sentou sobre suas pernas e debruçou a cabeça em seu colo. O homem sentiu o coração bater acelerado quando o menino lhe enlaçou o pescoço e disse, com toda a suavidade:

- Sabe? Eu gosto de você. Você é igualzinho ao que eu achava que você era.

Quando deu por si, os braços já haviam se aninhado em torno do pequeno. Naquele abraço, quem sabe, já havia amor. Deixou que o menino adormecesse e o levou com cuidado para a cama, para que ele não acordasse. Chorou em silêncio, tanto rejeitara aquele filho. O mesmo gosto de choro lhe voltou à boca enquanto observava o menino estirado no tapete da sala, absorto diante da televisão. Os pés, tão iguais aos seus. Victor. O garoto inclina levemente a cabeça para o lado, percebe a presença do pai, levanta e o pega pela mão, o faz sentar no tapete, deita a cabeça no seu colo, sorri. O homem acaricia os cabelos do filho, sem pressa – era apenas o primeiro domingo de muitos. Victor. Não era tão difícil assim amar um desconhecido.

Devia ter ligado para o pai no início da manhã, não ligou. Há exatos trinta e três dias o pai lhe telefonara pra dar os parabéns; fora seu aniversário. Passara a semana inteira angustiada pensando no que diria quando ele atendesse ao telefone; há muitos anos não se falavam, o primeiro e único contato havia sido aquele telefonema. Sentiu o coração acelerar quando reconheceu o número do pai no display do celular e lhe faltou coragem para atender à primeira ligação, teve medo que ele não insistisse, ele insistiu, chamou outra vez. Ela atendeu porque André estava ao seu lado segurando sua mão; amava André O pai dizia do outro lado da linha que a amava, percebeu que havia bebido um pouco, a voz era pastosa e pequena, “meu Deus”, pensou, “ainda nem é meio-dia”. O pai dizia do outro lado da linha que a amava, sabia que havia bebido para ter coragem. O pai tinha agora outras duas filhas que ela não conhecia nem queria conhecer, em parte se sentia magoada e substituída. Lembrava-se do pai abstêmio da infância, era o homem mais bonito que já havia visto. Era, também, o mais inteligente e atormentado. Todo mundo dizia que eram muito, muito parecidos; o mesmo sorriso, o mesmo jeito de andar, os mesmos olhos sonhadores. A mesma personalidade atirante. Tinha medo de ter o mesmo destino que ele. O pai era brilhante, sucumbira. Devia ter ligado para ele no início da manhã, sabia que estaria esperando por ela. “Oi, pai, como vão as coisas, liguei pra te dar os parabéns, se precisar de alguma coisa é só dizer”, ele ficaria feliz porque ela, a filha doutora, a primogênita, se lembrava, “eu te amo” daria nó na garganta e ficaria ali, não sairia. Devia ter ligado, não ligou; estava trabalhando, cuidando da guria que tivera uma crise nervosa porque enterrara o pai naquele domingo de comemoração, e de Rodolfo, que perdera os dois únicos filhos há dois anos em um incêndio, e de Jaqueline, que entrara em trabalho de parto, e de tantos outros, cada um com sua história. André não estava ali para segurar a sua mão, ela amava André e amava o pai, a ambos tinha de uma forma estranha e dolorosa. Disca o número do pai, a enfermeira irrompe no consultório e convoca para uma emergência. Telefona pouco antes da meia-noite, o telefone chama até cair a ligação, alguns segundos mais e de repente já era outro dia. Chorou; sabia que ele dormira esperando, entristecido por acreditar que ela não se importava, ela que tanto queria dizer “eu ainda sou a sua menina, pai”. Deitou o corpo no sofá da sala e adormeceu com o rosto ainda molhado.

E em poucas horas findava o dia e chegava a segunda-feira para o rosto molhado da amiga de Luci, Nívea, que amava o pai de Victor, André, que já não estava lá mas que segurara sua mão quando Antônio, seu pai, lhe telefonara no dia de seu aniversário. E assim chegaria a terça, a quarta, a semana que vem, o mês dali a cinco meses e o oitavo mês do ano seguinte, cada dia com sua história de amor guardado ou recém-descoberto, humano e imperfeito, esperando para ser vivido e correspondido no segundo domingo de agosto de um ano qualquer.


*Leia também: Homem e Menino


Gente: Feliz Dia dos Pais, para todos vocês. A resposabilidade de que este seja um dia realmente feliz é de cada um. Felicidade não cai do céu: é preciso semear e cultivar, diligentemente. Que cada semente plantada por cada um de nós - independente de sermos (e termos) ou não pais, mães, filhos ou solitários na multidão - floresça e frutifique não só neste dia, mas em todos os dias das nossas vidas.

Beijos a todos!