Publicado originalmente no blog Cotidianidades em um dia
perdido de agosto de 2007. Há muito mudei de endereço,
real e virtualmente. Mas a cidade, essa continua a mesma.
Seus fantasmas, infelizmente, também.
Era noite alta e eu ainda estava ali, sentada diante do computador, fitando pateticamente o documento em branco no qual eu havia escrito e deletado, incontáveis vezes, dezenas de inutilidades literárias. Depois de ouvir o repertório inteiro da Janis, eu já praticamente mergulhava, de cabeça, no desespero de um escritor que simplesmente não sabe o que escrever... Meu vazio mental, invariavelmente, me leva no mesmo rumo: uma xícara transbordante e quente de café. Diante desse pensamento convidativo e da minha momentânea incompetência criativa, me espreguicei languidamente como um felino e tomei o rumo da copa – já que a cabeça se recusava a funcionar, o paladar, ao menos, sairia no lucro.
Eu disse sair no lucro? Engano: para minha surpresa e indignação, não havia sequer um mísero pote de capuccino vagando pelo meu reino. Lembrei-me da loja de conveniência anexa ao posto de gasolina localizado em frente ao prédio onde moro; paciência, era sair no meio da madrugada para satisfazer minha vontade sobrenatural – afinal, não há empecilhos para deter um dileto e fervoroso apreciador de cafeína. Enfie-me na minha batida calça de moletom, tão cinza quanto o céu de uma cidade grande na hora do
rush, arrumei os cabelos em um coque preguiçoso, enfiei uns trocados no bolso – o suficiente para comprar o que desejava, pois não pretendia ser chamariz para os gatunos notívagos – e parti em busca do meu tesouro. O frio da noite entorpecia meu corpo e aquecia ainda mais a vontade de uma bebida fumegante; apressei os passos e, quando já tocava a porta de vidro da loja, ouvi aquela voz.
- Dá uma moeda, tia.
Virei-me em câmera lenta; era um menino. A sujeira e o corpo mirrado tornavam impossível precisar a idade; porém, havia um quê de ladino nos olhos, alguma coisa sugerindo que eu não me deixasse enganar pelo aspecto frágil... ignorar seria a melhor opção – além do mais, eu só tinha dinheiro para o café. Fiz menção de entrar na loja. Ele foi rápido.
- Só uma moeda tia. Pra comer. Faz dois dias que eu não como nada.
Ele talvez não soubesse, mas havia acabado de enfiar o dedo na minha ferida de boa menina cristã. Minha mãe costumava dizer que não se deve negar comida pra ninguém... E, se ele realmente estava faminto como parecia, eu iria para o inferno de primeira classe e sem escalas caso negasse aquela bendita – ou maldita – moeda. Bosta.
- Escute: isso é fome mesmo ou você vai torrar a moeda comprando cigarro?
Ele me olhou quase com uma auréola de santidade.
- Eu juro, tia. Não quero cigarro, não. Faz dois dias que não como nem um sanduba. Minha barriga tá roncando, pega aqui, ó.
- Tá, tá. Não precisa exagerar. Mas se estiver com fome, mesmo, compro um lanche pra você – e eu confesso que esperava como réplica uma enxurrada de palavrões e xingamentos. Vi em seu rosto que não era exatamente o que ele pretendia, mas era a minha vez de dar o xeque-mate.
- É pegar ou largar.
Ele aquiesceu, por fim.
- Tá bom, tia...
- Então vamos ali no boteco do Careca. E pode parar com esse negócio de tia.
Ele me acompanhou com muita naturalidade; eu é que não me sentia nem um pouco à vontade com aquele acompanhante inusitado. “Se esse garoto estiver noiado, é capaz de me matar”. Pedi que o Careca lhe trouxesse um sanduíche de mortadela, mas o menino me interrompeu a frase na metade, “não tem arroz com feijão?” – e a ansiedade era gritante nos olhos dele. O dono do boteco sorriu, sem dizer nada, e se retirou como uma sombra, retornando, dentro de alguns minutos, com um prato considerável onde, quentinhos, arroz, feijão, bife e batata frita aguardavam serenamente o momento de serem devorados por aquela boquinha faminta.
- Sobrou um pouco do jantar, esquentei no microondas.
O dono do bar havia realmente se superado.
Se aquele garoto queria dinheiro para comprar cigarros, isso eu não soube e talvez não saiba nunca. O fato é que ele se atirou à refeição, a princípio um tanto constrangido, depois com um ímpeto que eu sequer havia imaginado. Enquanto o observava, senti um certo remorso pela comida que havia deixado sobre a mesa naquele mesmo dia, apenas por uma indisposição blasé. Não sei se percebeu ou se era simples vontade de puxar conversa; entre uma garfada e outra, ele, finalmente, voltou a usar a boca para falar.
- Qual o seu nome?
Apenas olhei. Inexplicavelmente eu não conseguia dizer nada.
- Não posso te chamar de tia, não é?
- Chame como quiser – e, nesse ponto, me surpreendi com o sorriso que começava a nascer nos meus lábios.
-Tá bom. Vou chamar você de Maria.
- Ok, Maria está ótimo. E o seu?
- Na rua me chamam de Robinho. Por causa do jogador, sabe. Quero ser jogador também – e ele dizia isso com um orgulho solene.
A conversa prosseguiu nesse ritmo. Não sabia o nome, nem a idade, nem quem eram os pais... Uma história comum, como a de tantos moleques que vivem como fantasmas pelas ruas da cidade. Mas, naquele momento, um daqueles fantasmas estava à minha frente materializado em um metro e meio de sujeira, penúria e cheiro de cola e abandono, devorando um prato de arroz, feijão, bife e batata frita que havia sido pago com os trocados do meu café. A refeição finalmente terminou; ele agradeceu, se despediu com um sorriso feliz e desapareceu na madrugada fria, tão silenciosamente quanto havia surgido. Ainda fiquei ali parada por alguns segundos; então respirei fundo, enfiei a mão nos bolsos agora vazios e voltei para meu apartamento.
O desejo de um café havia sumido. O de escrever, idem. A cabeça não estava mais vazia, contudo passara a acumular mais pensamentos do que eu poderia organizar. Nessa noite fui para cama me sentindo um pouco como aquele garoto de pele suja e idade indefinida, para quem a fome física era apenas mais uma entre tantas outras. Talvez não nos encontremos mais; porém, acredito que não nos esqueceremos um do outro, talvez até nos reconheçamos em alguma esquina dessa metrópole de fantasmas. E talvez eu até o convide para tomar um café comigo.