segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Primazia

"Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água..."

Chico Buarque - Gota D'Água


Soundtrack: Dionne Warwick - Walk on By



Eu te amei com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas. Escancarei a nudez da minha alma diante dos teus olhos, te entreguei meu corpo de dama e meu cio de besta. Confessei-te meus segredos, adulterei minha pouca razão e desalinhei-a para caber sem temores entre as tuas carícias. Sim, eu rompi com todas as minhas premissas, porque te amei – e, porque te amei, morri e vivi desse amor tantas e tantas vezes, e em todas as vezes cri que fosse a última e me surpreendi ali, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo. Porque te amei.

E esse amor, onde ficou? Desalentado, esquecido atrás da porta, enquanto apagavas as luzes para reacender teus olhos em alguma esquina furtiva do teu labirinto de desejos, em algum encanto barato e fugaz. Perdido entre os cacos da última garrafa de vinho, um tanto ébrio, borrado ainda do violáceo dos teus beijos frios. Ressequido. Esse amor ficou vagando atônito, a passos pequenos, descrevendo círculos estéreis por entre os “não” que a tua inconstância deliberou cravar entre nós dois. Esse amor se desfez do abraço frouxo de amor que cinge uma inexistência e cruzou os braços – cruzou os braços. E amor de braços cruzados esquece de si, amor, ou se faz esquecer – porque vive de tempo presente, desentende, ignora o depois.

Esse amor não ficou, amor. Esse amor, aquele amor, se foi.

E tu? Por onde vais agora, sem vinho e sem esquinas?


domingo, 26 de outubro de 2008

Caro Desconhecido:


Escrito e endereçado a quem interessar possa,
na primeira manhã do primeiro inverno em que nevou flores.


Decidi que lhe escreverei cartas. Não me importa que não nos conheçamos; é a você mesmo que desejo escrever. Tampouco me incomoda não saber a sua história; ainda assim você saberá a minha. Em cada letra segue meu segredo mais bem guardado, minhas verdades respiradas, o calor das pontas dos meus dedos marcados pela tez das sensações impregnadas na minha íris. Uma história nem tão bonita, nem tão feia. Nem tão comum, nem tão extraordinária. Uma história nem tão uma, nem tão história, contada, sobretudo, nas pausas e nos hiatos onde pululam as palavras que não escrevi. Não sei se o endereço está correto mas, se nesse momento você estiver lendo essas linhas e tentando compreender o que se passa, significa que sim – é você a quem minhas palavras deveriam chegar, após se extraviarem de tantos silêncios. É assim: às vezes precisamos facilitar as coisas para que a vida se encarregue de nos levar a quem seja capaz de transformar signo em significância.

Escrever-lhe-ei uma carta por dia, sem data, sem remetente – um coração não cabe no tempo, e o tempo não cabe em nomes ou envelopes. Escreverei para falar de mim. E, quem sabe, de você; talvez lhe seja desconfortavelmente surpreendente perceber que somos tão iguais. Ou, talvez, lhe seja um alento. O que sei é que é a você, caro desconhecido, que desejo escrever essas cartas, embora não saiba o motivo pelo qual me é tão necessário e urgente que me conheça – talvez porque, quem sabe, será você a me reconhecer em meio à profusão de rostos que assomam à minha superfície em busca de existência e perenitude, caso um dia eu não me recorde mais de quem sou.


sábado, 25 de outubro de 2008

E Hoje, no Novas Visões...

OUTROS DIAS

Às vezes despertamos tarde demais para o fato de que algumas coisas não podem ser recuperadas. Tempo é uma delas; e nenhuma outra perda acontece de forma tão silenciosa, como se nada fosse. O tempo se dilui diante dos nossos olhos e só nos damos conta disso quando, entre surpresos e incrédulos, nos pegamos perguntando a nós mesmos onde foram parar aqueles dias em que a vida era quase leve.


Onde foram parar aqueles dias em que a vida era quase leve? Pessoas chegando, partindo, ficando, a gente correndo, amando, sofrendo, fazendo. Passando. Crescendo. Outra hora eu digo. Outra hora eu faço. Outra hora, que sabe-se lá onde foi parar. O Fulano que morreu, a Cicrana que casou, o filho do Beltrano, que nasceu no ano passado. O Beltrano. O ano passado. A camisa assinada no último dia de aula, há tanto tempo. Tanto tempo. A gente, onde a gente foi parar. (...)


Hoje, 25, é meu dia de bater ponto lá no Projeto Novas Visões. Dessa vez com uma cronicazinha despretensiosa sobre tempo e o que fazemos - ou deixamos de fazer - com ele.

O texto, na íntegra, pode ser conferido aqui (e agora sim, o link está correto). Nos vemos por lá :)

Beijão pra todo mundo e excelente fim de semana!


quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Infinitivo

"a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome"

Paulo Leminski



Gosto da noite, muito mais que do dia. Das verdades que brilham no escuro, desembaraçadas dos fogos-fátuos palavreados em escarcéu – e essa luminescência improvisada e nua me faz crer que é à noite que o sol verdadeiramente nasce. Um ou outro carro passa, uma ou outra pressa corre... E, exaustas, as evidências ariscas do dia findo escorregam pelas calçadas e bancos de praça, enquanto em cada canto alguém ressona à espera do dia seguinte – um desconhecido grávido de certezas de geometria poeticamente incerta.

Gosto da noite com suas lembranças claudicantes; com seus vazios trôpegos, repletos de faíscas de iminências. Com seus lares de janelas fechadas, onde um ou outro par de olhos abertos se demora fitando o nada em busca desse não-sei-o-quê tão bem guardado entre as estrelas – mas que sempre desliza por entre os arranha-céus e antenas de tevê para pousar nas mãos de quem o descobre lá, quieto e vivo. Um ou outro risco cresce, um ou outro riso esquece. Tudo mais é mudez pulsante, como letras deitadas num papel afagando a própria imensidão.

Gosto da noite com suas preces sussurradas, com seus túrgidos lenitivos, com seus infinitivos roucos desaguados entre o adormecer e o despertar. Com seus gerúndios: um casal se amando, uma porta se abrindo, ando, indo, onde – e nada do que se esconde nesse ir e vir é imune à comoção derramada por essa lua branca, branca e cristalizada, rasgando a hegemonia da escuridão. Talvez também eu tenha em mim uma lua branca, branca e cristalizada, comovendo as notas da minha própria respiração.


terça-feira, 21 de outubro de 2008

Tempo

Cada um tem o seu passado fechado em si,
tal como um livro que se conhece de cor,
livro de que os amigos apenas levam o título.

Virginia Woolf


Hoje penso nos planos que não quero fazer, nas memórias que não quero guardar, nos passos que calçaram meus pés e que nada tinham de meus. Penso no porvir, embora saiba que o porvir não existe e que tudo além desse momento é ilusório, e que o antes e depois são apenas pretexto para que eu persista na hesitação em reescrever-me neste exato minuto – o único fragmento de tempo que realmente me pertence.

Despeço-me de velhos conceitos. Dispo-me de arquétipos. Descontextualizo-me na tentativa de fazer jus à minha real forma e, assim, escapar das redundâncias que contrariam a delicada porém indiscutível objetividade da minha natureza. Permito-me não querer o óbvio, o fato consumado, o crível, a cara estereotipada das possibilidades restritas. E compreendo, acato meu direito de ser mutável – posto que as transformações são a única e real constância.

Hoje penso, apesar de pretender que meus pensamentos se esvaiam de mim como a água que se faz vapor para abandonar o corpo de um rio em um dia quente de verão. Satisfaz meu espírito apenas sentir. Perceber. Incorporar. Tatear-me em busca do ser que há tanto tenho buscado sem compreender que esteve sempre comigo, estremecer ante o impacto da minha existência no mundo, encantar-me com a harmonia das minhas imperfeições, tão preciosas por serem unicamente minhas. Encaixar-me na minha carne, essa carne que me pertence e a ninguém mais.

E é bom esse revisitar-me. E havia de ser neste minuto, neste segundo. É deliciosa e indiscutivelmente vital a sensação de alcançar a mim mesma em meio a todas as outras que me tornei e degustar o fato de que, a despeito da multiplicidade, ainda sou eu quem habita este corpo. E assim, à revelia do tempo que prossegue implacável em sua jornada infinita, me permito sorver, em longos e intermináveis goles, esse instante permeado de eternidades, essa irracionalidade voluntária repleta de uma serenidade feliz e indiferente a tudo mais que teima em escapar ao universo perfeito contido nesse agora.


E tem novidades lá pelo Espasmos de Riso, pessoas queridas - o primeiro post feito em dupla, dessa vez escrito por mim e pela dona Anne (imaginem o tamanho da confusão!!). Historinha de "Internete", dessa vez completamente inventada, nascida num dos nossos nada raros surtos emiessiênicos e transcrita na íntegra, sem retoques. Passem lá pra conferir, e divirtam-se!


Desconexões

"(..) os detalhes inconfundíveis lhe saltando aos olhos,
tomando corpo, criando covinha no queixo, barba
por fazer, camiseta branca, tatuagem no peito.

Sabe vontade? Além."

Flávia Brito - Correspondência



É em meio à penumbra do meu quarto escuro que sou capaz de divisar, nitidamente, os contornos do teu corpo... Minhas mãos, ávidas pelo encontro da tua pele quente, macia, desnuda de pudores, tateiam lânguidas o imenso espaço vazio em redor de mim – espaço que me cega, que me angustia, que me enlouquece por ostentar, diante dos meus olhos, essa tua ausência irrespirável.

Vejo teu peito nu, encoberto apenas pelas intenções de delícias sem hora, nem fim; vejo teus pêlos, teus poros, teu meio-sorriso se transformando, pouco a pouco, na boca que me beija e emudece meus fantasmas. E sinto teu gosto – esse gosto raro, febril, esse gosto unicamente teu de desejo e entrega sem defesas, esse gosto inviolável e puro de devaneio arrebatadoramente real.

São teus os olhos que aqui me despem com todo o ímpeto da tua vontade soberana. São teus os braços que aqui me enlaçam como serpentes transbordantes de cio... E sim, és tu quem me sente, quem me invade, quem me transporta inconsciente e submissa para o teu mundo de prazeres e fantasias, quem me faz rainha e escrava, quem incendeia e apazigua meu frágil corpo feminino, incandescente diante da tua urgência viril. E sinto, respiro, sorvo teu cheiro de sonho palpável, me embriago da tua presença etérea... E, quanto mais tenho de ti, mais busco, mais quero, mais e mais preciso.

E de repente me descubro perdida em minhas desconexões, em meus anseios e delírios noturnos; e minhas mãos, novamente, apenas podem tocar a escuridão, pois uma vez mais retorno à angustiante percepção de me saber aqui, sozinha, com os lábios ainda úmidos do teu beijo surreal... E com o corpo trêmulo e exausto me dou conta de não estar completamente só – pois tua lembrança, ainda que fugaz, permanece a velar meu sono como um anjo protetor... E sabendo-te aqui meus olhos se fecham, serenos, e adormeço em paz, como uma criança.



segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Na Veia

"F.: às vezes acho que a gente veio ao mundo ou com um
parafuso a menos, ou com um coração a mais, ou ambos, talvez...
P.: um coração a mais, que para o mundo é, de fato, um parafuso a menos...
F.: é verdade... sorte nossa: tanta coisa cabe em dois corações!"

Pequeno diálogo entre mim e Patrícia,
em uma de nossas muitas elucubrações
sobre sentimentos e suas (in)definições.




Sou daquele tipo de gente que só incorpora, intransitivamente. Vivo dessa absorção das coisas, desse admiti-las em mim ainda que tal simbiose não as torne minhas – e me torne intensamente delas. Por isso nunca gostei de despedidas: porque de alguma forma me tiram aquilo de que faço parte, e nesse ir-me um pouco a cada aceno último vou ficando aquém das minhas próprias histórias, das histórias que escrevi na pele com as tintas que minha alma produziu. Porque só incorporo, intransitivamente.

Por isso nunca escapo dessa coisa de sentir – e de tanto sentir, com tanto de mim, vou virando algo sempre a meio palmo de crescer e não caber mais em si, vou virando a iminência de um esgotamento que nunca se concretiza; incorporo e transformo tudo em condição de incorporar e incorporar e incorporar... E fico sentindo até sentimento virar palavra, e palavra assumir cor e sair rindo. Sabe quando a gente gargalha por dentro? É palavra sentida, virada em sorriso de alma, uma coisa que quem vê não entende muito bem mas que quando percebe já se deixou contagiar, que sorriso de alma faz cócegas nos braços da alma alheia, é assim sem cerimônia...

E, pensando bem, fazer cerimônia pra quê?




___________
*NOTINHAS*

* Hoje, segunda-feira, começo de semana, todo mundo devidamente de volta à rotina real e virtual... falando em virtual, a nossa Internet de todo santo dia é justamente a bola da vez lá no Coletivo, com um texto delicioso da Mirian Martin inaugurando a rodada. Recomendo e convido-os todos para essa viagem!

* E falando em recomendar, agradeço as palavras do Vinícius lá no Vômito Cultural - uma revista eletrônica comandada por gente jovem com curiosidades e assuntos pra todos os gostos - dirigidas a este blog aqui e à blogueira que vos escreve. Obrigada, rapaz! Quem não conhece passe lá pra conferir. Os meninos capricham :)

* Aos poucos conserto o estrago que fiz no template e reinsiro os links de todo mundo. Editar HTML vesga de sono dá nisso.


Beijos a todos e excelente semana!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Intermezzo Noturno

Publicado originalmente no blog Cotidianidades em um dia
perdido de agosto de 2007. Há muito mudei de endereço,
real e virtualmente. Mas a cidade, essa continua a mesma.

Seus fantasmas, infelizmente, também.



Era noite alta e eu ainda estava ali, sentada diante do computador, fitando pateticamente o documento em branco no qual eu havia escrito e deletado, incontáveis vezes, dezenas de inutilidades literárias. Depois de ouvir o repertório inteiro da Janis, eu já praticamente mergulhava, de cabeça, no desespero de um escritor que simplesmente não sabe o que escrever... Meu vazio mental, invariavelmente, me leva no mesmo rumo: uma xícara transbordante e quente de café. Diante desse pensamento convidativo e da minha momentânea incompetência criativa, me espreguicei languidamente como um felino e tomei o rumo da copa – já que a cabeça se recusava a funcionar, o paladar, ao menos, sairia no lucro.

Eu disse sair no lucro? Engano: para minha surpresa e indignação, não havia sequer um mísero pote de capuccino vagando pelo meu reino. Lembrei-me da loja de conveniência anexa ao posto de gasolina localizado em frente ao prédio onde moro; paciência, era sair no meio da madrugada para satisfazer minha vontade sobrenatural – afinal, não há empecilhos para deter um dileto e fervoroso apreciador de cafeína. Enfie-me na minha batida calça de moletom, tão cinza quanto o céu de uma cidade grande na hora do rush, arrumei os cabelos em um coque preguiçoso, enfiei uns trocados no bolso – o suficiente para comprar o que desejava, pois não pretendia ser chamariz para os gatunos notívagos – e parti em busca do meu tesouro. O frio da noite entorpecia meu corpo e aquecia ainda mais a vontade de uma bebida fumegante; apressei os passos e, quando já tocava a porta de vidro da loja, ouvi aquela voz.

- Dá uma moeda, tia.

Virei-me em câmera lenta; era um menino. A sujeira e o corpo mirrado tornavam impossível precisar a idade; porém, havia um quê de ladino nos olhos, alguma coisa sugerindo que eu não me deixasse enganar pelo aspecto frágil... ignorar seria a melhor opção – além do mais, eu só tinha dinheiro para o café. Fiz menção de entrar na loja. Ele foi rápido.

- Só uma moeda tia. Pra comer. Faz dois dias que eu não como nada.

Ele talvez não soubesse, mas havia acabado de enfiar o dedo na minha ferida de boa menina cristã. Minha mãe costumava dizer que não se deve negar comida pra ninguém... E, se ele realmente estava faminto como parecia, eu iria para o inferno de primeira classe e sem escalas caso negasse aquela bendita – ou maldita – moeda. Bosta.

- Escute: isso é fome mesmo ou você vai torrar a moeda comprando cigarro?

Ele me olhou quase com uma auréola de santidade.

- Eu juro, tia. Não quero cigarro, não. Faz dois dias que não como nem um sanduba. Minha barriga tá roncando, pega aqui, ó.

- Tá, tá. Não precisa exagerar. Mas se estiver com fome, mesmo, compro um lanche pra você – e eu confesso que esperava como réplica uma enxurrada de palavrões e xingamentos. Vi em seu rosto que não era exatamente o que ele pretendia, mas era a minha vez de dar o xeque-mate.

- É pegar ou largar.

Ele aquiesceu, por fim.

- Tá bom, tia...

- Então vamos ali no boteco do Careca. E pode parar com esse negócio de tia.

Ele me acompanhou com muita naturalidade; eu é que não me sentia nem um pouco à vontade com aquele acompanhante inusitado. “Se esse garoto estiver noiado, é capaz de me matar”. Pedi que o Careca lhe trouxesse um sanduíche de mortadela, mas o menino me interrompeu a frase na metade, “não tem arroz com feijão?” – e a ansiedade era gritante nos olhos dele. O dono do boteco sorriu, sem dizer nada, e se retirou como uma sombra, retornando, dentro de alguns minutos, com um prato considerável onde, quentinhos, arroz, feijão, bife e batata frita aguardavam serenamente o momento de serem devorados por aquela boquinha faminta.

- Sobrou um pouco do jantar, esquentei no microondas.

O dono do bar havia realmente se superado.

Se aquele garoto queria dinheiro para comprar cigarros, isso eu não soube e talvez não saiba nunca. O fato é que ele se atirou à refeição, a princípio um tanto constrangido, depois com um ímpeto que eu sequer havia imaginado. Enquanto o observava, senti um certo remorso pela comida que havia deixado sobre a mesa naquele mesmo dia, apenas por uma indisposição blasé. Não sei se percebeu ou se era simples vontade de puxar conversa; entre uma garfada e outra, ele, finalmente, voltou a usar a boca para falar.

- Qual o seu nome?

Apenas olhei. Inexplicavelmente eu não conseguia dizer nada.

- Não posso te chamar de tia, não é?

- Chame como quiser – e, nesse ponto, me surpreendi com o sorriso que começava a nascer nos meus lábios.

-Tá bom. Vou chamar você de Maria.

- Ok, Maria está ótimo. E o seu?

- Na rua me chamam de Robinho. Por causa do jogador, sabe. Quero ser jogador também – e ele dizia isso com um orgulho solene.

A conversa prosseguiu nesse ritmo. Não sabia o nome, nem a idade, nem quem eram os pais... Uma história comum, como a de tantos moleques que vivem como fantasmas pelas ruas da cidade. Mas, naquele momento, um daqueles fantasmas estava à minha frente materializado em um metro e meio de sujeira, penúria e cheiro de cola e abandono, devorando um prato de arroz, feijão, bife e batata frita que havia sido pago com os trocados do meu café. A refeição finalmente terminou; ele agradeceu, se despediu com um sorriso feliz e desapareceu na madrugada fria, tão silenciosamente quanto havia surgido. Ainda fiquei ali parada por alguns segundos; então respirei fundo, enfiei a mão nos bolsos agora vazios e voltei para meu apartamento.

O desejo de um café havia sumido. O de escrever, idem. A cabeça não estava mais vazia, contudo passara a acumular mais pensamentos do que eu poderia organizar. Nessa noite fui para cama me sentindo um pouco como aquele garoto de pele suja e idade indefinida, para quem a fome física era apenas mais uma entre tantas outras. Talvez não nos encontremos mais; porém, acredito que não nos esqueceremos um do outro, talvez até nos reconheçamos em alguma esquina dessa metrópole de fantasmas. E talvez eu até o convide para tomar um café comigo.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Wishlist

"Sonhar é acordar-se para dentro."

Mário Quintana




Ao invés de certezas, esperanças.

Aquele rastro doce que as coisas doces deixam mesmo quando chegam ao fim.

A lembrança delas na ponta da língua.

Uma saudade igualmente doce que venha e me ocupe toda a boca, e não enjoe nem arranhe meu peito de paladar apurado.

Um copo de absurdo por dia.

E o destino misterioso e surpreendente como um ventre grávido.

***

Há um rumor do lado de fora, percebo – é o meu coração que outra vez bate à minha porta...

(Acenda-me uma estrela e deite-a entre meus dedos, e não me acorde se eu dormir aqui.)



Pati: três pratos de trigo para três tigres e,
para nós, nosso copo diário de agás maiúsculos ;)

sábado, 11 de outubro de 2008

(...)

"(...) Amor é com quem me deito e deixo
montar
minhas coxas em forma de forquilha
e onde
amor abre caminho pelas minhas
águas."

Olga Savary - Nome




Minha idéia fixa é gastar meus lábios na tua saliva. Desagregar o tempo e reinventá-lo contado sem pressa nos teus dedos, nas pausas da tua respiração, nos hiatos das nossas insensatezes cometidas em nome das urgências da carne e dos anseios do espírito. Vandalizar essa distância que nos separa e reduzi-la a míseras descontinuidades, vestir meu corpo com a tua pele e umedecer-me do teu suor inquieto, morder lentamente cada um dos teus desejos. Enlaçar tuas vontades entre as minhas pernas, sincronizar tuas pulsações com o ritmo dos meus instintos de fêmea. Beber da tua boca o gosto disrítmico e adocicado da tua entrega, te receber em mim e ser o universo onde repousas tua languidez, a paz que sobrevém ao caos da colisão entre as nossas delícias. Tripudiar sobre a lógica – é tão simples e óbvio ocuparmos o mesmo lugar no espaço, porque o mundo gira diferente na tua íris. Banir as solenidades vocabulares e dizer-me inteira a ti na linguagem dos meus impulsos, e me responda, como é que se diz eu te amo sem ser clichê?

As minhas reticências te gritam, indiscretas.



sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Controle de Danos

"No entanto (até 'no entanto' dizia agora)
estava ali e era assim que se via.
Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de."

Caio Fernando Abreu - Morangos Mofados


Houve um tempo em que acreditei que todo e qualquer erro era passível de punição. Hoje sei que fui eu quem me renegou a maior parte dos perdões, embora não compreenda – ou não queira compreender – em nome de quê violentei meu direito de ser leve. O que sei é que expiei minhas culpas, as havidas e as não havidas, as tangíveis e as presumíveis, quando desisti de escarificar minha humanidade. E que ainda não aprendi a manejar com destreza nem os sentimentos, essas pulsões ininteligíveis, nem a palavra, essa lâmina expurgadora: desembainhadas, as palavras descalçam as luvas de pelica e ricocheteiam cuspindo fogo, e não é que seja essa a minha vontade - essa é a vontade do meu medo, da minha inexperiência em domá-las. O meu medo é quem cobra; eu pago seu anacrônico tributo. Talvez o que eu queira dizer é que quero dizer, sem medo ou remorso. E que não tenho a obrigação de estar certa. E que não estar certa não me faz necessariamente estar errada, e que não há culpa em deixar de pegar o desvio existente nessa rota de colisão entre coração e cérebro, como não existe culpa no assincronismo entre as intenções de ambos.

Porque mesmo que eu cuspa as palavras e com elas a minha acidez, essa que eu nem sabia que tinha, ainda assim é amor o que eu estou dizendo.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

... e ontem, quase amanhã,

"É quase indecente essa tarefa de elisão,
ainda mais para mim, para mim!
É um abandono quase grave, e barato.
Você precisava de uma injeção de neo-realismo, na veia."

Ana Cristina Cesar - Luvas de Pelica



eu talvez soubesse o que fazer com esse hoje que não encontra seu lugar e que sem paradeiro ocupa meus hiatos de voz e minhas gavetas. Que fecha as cortinas para assegurar que o dia não comece e nem termine, é sempre essa meia-luz – e que depois se deita ao meu lado e se esconde sob o meu lençol, e se esfrega nas minhas pernas e me afaga as costas, é sempre essa meia-luz. Simples. Nem ontem, nem amanhã, somente esse hoje indiferente e deslocado orbitando entre meus dedos em generoso equilíbrio. É esse hoje obsoleto quem me traz o café na cama, mudo. E esse silêncio, onde está que não o escuto? E esta música que não cessa, e este tempo que não passa. E o que estou dizendo, mesmo? Nada. Apenas esta deleitada e acintosa abstração, onde me precipito e afundo os pés para escapar do próximo gesto - que nunca sei se serei temperança ou calamidade. Sou algo inesperado e estranho a mim, sou meu próprio rumor. Mas estou aqui, implícita. O meu lençol é barato, a minha alma não é.