terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Algo Sobre Minha Mãe




Das raízes. As minhas.



Observo minha mãe e meu filho adormecidos ao meu lado no sofá. É quase meia-noite. Ele nos braços dela. Minha mãe e meu filho ressonam enquanto permaneço de olhos abertos diante da tevê, aguardando pacientemente que a insônia que me visita todas as noites se exaspere da minha monótona companhia e se vá – e me deixe descansar, enfim. Tranquilos, minha mãe e meu filho dormem. Não consigo deixar de pensar na segurança que é nos perpetuamos naqueles que amamos. Minha mãe e meu filho estão ali, e ignoram a noite e seus pequenos ruídos, e me ignoram e ignoram o velho filme policial e minha insônia fiel. Estão ao meu lado e, apenas, dormem.

Observo minha mãe com meu filho nos braços e imagino quantas noites essa mesma cena deve ter se repetido comigo. Eu me orgulho de ter boa memória, mas, confesso, as primeiras lembranças que tenho de minha mãe datam do nascimento da minha irmã caçula (quando eu tinha por volta de quatro anos), ou seja: quando ela tinha a idade que tenho hoje eu contava apenas seis anos, portanto, não recordo assim tanta coisa. Lembro, contudo, dos olhos, que sempre foram impressionantes e, àquela época, eram marcantes mesmo para mim – uns olhos profundos, inquisitivamente melancólicos, que pareciam trespassar a tudo e a todos com sua languidez misteriosamente castanha. Não sei se ela percebia, mas um de meus passatempos preferidos era, sempre foi, observá-la. Ela era bonita, muito bonita, com uma pele muita branca sem nenhuma mancha ou imperfeição e um corpo miúdo e ágil como o de uma bailarina – e aquele corpo pequeno se movimentava tão rápido que eu tinha certeza de que, se quisesse, ela poderia ficar parada no ar, como um beija-flor. Às vezes parecia caminhar na ponta dos pés – como se, a cada passo, dançasse pelo mundo uma valsa suave. Fisicamente sempre fui mais parecida com meu pai, e essa semelhança era algo que realmente me desgostava – não porque não gostasse de meu pai ou porque sua aparência fosse desagradável, ao contrário: meu pai havia sido um homem muito bonito em sua juventude. O que me desagradava não era a semelhança com ele, mas a falta de semelhança com ela. Eu era forte e robusta, e cresci bem rápido: mal entrara na adolescência e meu corpo, já sinuoso e efervescido pelos hormônios, havia ultrapassado o porte de minha mãe, o que me deixou triste porque sua pequenez delicada de bailarina era até ali (como sempre seria) meu ideal de beleza e feminilidade.

Minha mãe nunca passou despercebida: estava sempre muito bem arrumada e com os cabelos dourados e lisos muito bem cortados, invariavelmente na altura da nuca. Era uma daquelas pessoas para quem o tempo não ousava passar: eu ouvia as histórias sobre ela, contadas pelos meus avós e tios, e eram histórias bonitas e comoventes, algumas engraçadas e outras nem tanto, mas todas parecendo ter saído de algum romance – os mesmos romances que eu lia nos livros em cuja contracapa ela rabiscava cartas com sua letra grande e redonda, vigorosa e fluida como ela própria. Minha mãe tinha um cheiro sempre muito bom e peculiar – e não sei se era um cheiro que só eu percebia ou se, quando ela passava, todos sentiam aquele perfume delicado a imiscuir-se descerimoniosamente em todas as superfícies e narinas. Quando ela ria, era impossível não rir também – porque era uma risada sonora e muito diferente das outras, não por ser a risada dela, minha mãe, mas porque o som que nascia através daqueles lábios – os mesmos lábios que, feito róseos e delgados braços de menina, se contraíam levemente quando ela estava triste ou aborrecida – ia tomando conta de tudo em volta como se aquele momento feliz fosse feito para acabar jamais, e o rosto dela corava muito suavemente, tão suavemente que era perceptível apenas porque vê-la rindo nos absorvia de tal maneira que era impossível desviar os olhos para outra direção.

O início da minha vida adulta foi quase um martírio para nós duas. Por algum motivo, na minha cabeça, cortar o cordão significava contrariá-la de todas as formas possíveis. Sinceramente, não me lembro se um dia pedi desculpas por cada uma das dores que lhe causei. Continuo não me parecendo com ela fisicamente, mas me vejo repetindo muito de seus gestos, hábitos e maneiras, como, acredito, meu filho também fará quando tiver a idade que tenho hoje. Um dia direi isso a ela, como também lhe direi que toda a animosidade daqueles anos não significava que eu não a amasse, mas que a amava tanto a ponto de não saber o que fazer. Éramos dois gigantes permanentemente em luta – ela por desvelo, eu por rebeldia. Ambas, por amor. E foi justamente por essa época que aprendi que o amor, sobretudo o amor entre pais e filhos, embora não seja capaz de simplificar as coisas, tem o dom de nos fazer crescer apesar delas – ainda que as diferenças pareçam assustadoramente abissais. 

Observo minha mãe e meu filho, o quanto são parecidos – a mesma pele branca e sem imperfeições, os mesmos olhos melancólicos e misteriosamente castanhos, o mesmo cabelo dourado – e penso que, um dia, daqui a muitos anos, esta cena se repetirá e serei eu adormecida no sofá com meu neto nos braços enquanto meu filho, insone e pensativo, rememorará qualquer coisa marcante a meu respeito. Não consigo deixar de pensar na segurança que é nos perpetuamos naqueles que amamos, esta segurança morna e adocicada que alisa nossos cabelos enquanto dormimos e que, enquanto dormimos, sussurra aos nossos ouvidos que alcançar a eternidade é, sim, possível – e que nós vivemos para sempre por sermos feitos muito mais de amor do que, meramente, de carma e DNA.


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créditos da imagem: Google (desconheço autoria)



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Des(a)tino


Daquele lugar, aqui.



Enquanto meus olhos repousam sobre a contraditória indiscrição que é viver, apenas observo. Não a minha vida, não necessariamente a vida de alguém: observo, escondida naquele canto esquecido entre uma vaga lembrança e uma existência presente, escuro e empoeirado como um vão da escada que se dirige àquele lugar que tanto evitamos e que tanto nos fascina justamente porque não o conhecemos, observo a imagem em reflexo àquilo que eu costumava chamar de “aqui”, sem sê-lo – uma espécie de ponte talvez, eu que tanto medo tenho de pontes embora goste de caminhar sobre, partindo de, em direção a. Um abismo contundido, uma brisa contundente, um contudo – um, contudo. Conteúdo. Tenho todos os dias mais uma chance de desatar de mim o laço que amarra a alguns receios minha liberdade. Tenho. E aperto o nó, como se aperta a garganta de um sonho para fazê-lo lutar para sobreviver ao pressentir a iminência da própria morte. Há dias nos quais desconfio que a coragem seja um pretexto para desistir insuspeitadamente, pois, para resistir, é preciso precaução – e alguns medos são, de fato, o que nos mantêm vivos. 

Partindo de, em direção a. E lá vou eu em busca de qualquer des(a)tino que me caiba na vida, mais uma vez.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Onde a Mágica Acontece

Soundtrack: Jim Sturgess - All My Loving

Aí você pensa: por que esses desencontros acontecem justamente na minha vida?

Você está sozinho e, um dia, conhece alguém legal. Legal é pouco: extremamente legal. Além de extremamente legal, a criatura é bonita, simpática, inteligente, divertida, bem-sucedida e compatível com você do ponto de vista intelectual, sexual e até astrológico. Como se não bastasse, move montanhas para estar ao seu lado, ama sinceramente o seu cachorro de estimação, prepara como ninguém o seu prato favorito e, por motivos óbvios, virou o xodó da família. Tudo o que você sempre quis – mas, por algum motivo, depois de algum tempo, você começa a se perguntar se tem algum problema de audição ou se os sininhos realmente não tocaram pois tem a sensação de que, embora não falte nada, falta. Logo você está all by yourself de novo, se perguntando por que esses desencontros acontecem justo na sua vida e as suas borboletas gástricas ignoraram a existência de alguém que, sem dúvida nenhuma, era o seu número. É, colega. Não adianta insistir. A gente não escolhe por quem se apaixonar. É assim: você estava de coração aberto, mas a mágica, simplesmente, não aconteceu.

Ninguém se apaixona por outra pessoa só porque ela saltou de bungee jump carregando uma faixa com o seu nome. Ou porque ela preenche absolutamente todos os requisitos que você inclui naquela lista enorme repetida à exaustão, durante a sua vida inteira, em cada prece em favor da sua vida amorosa. O pacote completo impressiona à primeira vista, mas os detalhes, ah, os detalhes, essas coisas às vezes inapropriadas que nos saltam aos olhos tão apropriadamente. A gente se apaixona nos detalhes. No detalhe do sorriso, no detalhe do olhar, no detalhe do clichê, no detalhe de alguma frase ridícula. A gente se apaixona no detalhe da camisa fora de moda que não tem nada a ver com a produção mas tem tudo a ver com a sua alma demodê e pode se apaixonar definitivamente no detalhe “não acredito que a gente tem o mesmo filme preferido, cara”. A gente percebe que o estômago virou uma sede de borboletas hiperativas diante da banalidade, porque o “especial” nasce aqui dentro, muito dentro, é algo muito particular: um belo dia, o modo como alguém segura a caneta, diz “oi” ao telefone ou passa a mão nos cabelos ganha um novo significado diante dos seus olhos, e o simples ato de mascar um chiclete pode abrir a porta para uma observação demorada – e enamorada – do quanto os músculos faciais do destinatário da sua paixão ficariam ainda mais bonitos durante o um beijo. Ah, os detalhes. Quem nunca sorriu um sorriso bobo diante do gesto cotidiano de alguém, quem nunca se sentiu andando nas nuvens ao acompanhar alguém em sua caminhada, quem nunca teve certeza de que a terra parou de girar no exato instante em que alguém se sentou ao seu lado puxando conversa, quem nunca se surpreendeu com a própria vulnerabilidade ao ser surpreendido pelo próprio coração me perdoe, mas não sabe o que é se apaixonar.

Não existe a pessoa errada, tampouco a pessoa certa – o que faz a gente se apaixonar depende menos do que o outro nos oferece e mais, infinitamente mais, de quem somos no momento em que encontramos alguém. Na dúvida, a culpa é sempre nos neurotransmissores. Porém, se você não está disposto a se apaixonar, um conselho: ignore os detalhes. Por mais que se diga que a paixão é mera questão de química, os tais detalhes são o mínimo múltiplo comum entre o que acontece mundo afora e tudo o que vivemos coração adentro. Há quem diga que é química, mas, no fundo, é como mágica. E a mágica – por sorte – não tem hora para acontecer.

Imagem: Google