quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Trivialidade.






Há alguns dias eu estava com um amigo na livraria de um shopping center, em busca de um presente para um outro amigo. Loja cheia, com mezaninos cheios e com a cafeteria igualmente lotada, coisa que definitivamente não é empecilho para dois alucinados por café. Escolhemos nossos livros, nos dirigimos até o balcão, fizemos nosso pedido e, enquanto esperávamos, Juliano avistou uma mesa com três lugares ocupada por apenas uma pessoa.

- Com licença. Você se importa de dividir a mesa com a gente?

O rapaz olhou para a cara do meu amigo um tanto surpreso, não sei se pela naturalidade com que a pergunta havia sido feita ou se por ser uma vítima estreante naquele tipo de abordagem – afinal, basta olhar para o lado onde quer que se esteja para reconhecer uma infinidade de “solitários por força do hábito”: no cinema, nos restaurantes, lanchonetes, ônibus, bancos de praça... o fato é que, refeito da surpresa, o tal rapaz concordou em dividir conosco sua mesa-para-três-ocupada-por-um.

Confesso que me sinto pouco à vontade de me sentar com desconhecidos, e costumo resolver esse pequeno problema da forma mais simples possível. Apresentando-me. Foi exatamente o que fiz.

- Muito prazer, Flávia. E este é Juliano – e ambos, meu amigo e eu, estendemos a mão com um sorriso. O rapaz retribuiu na mesma moeda e, como há poucas coisas no mundo que um sorriso genuinamente simpático não resolva, em poucos minutos a conversa fluía como se fôssemos três velhos conhecidos. Entre goles de café, biscoitinhos amanteigados, gargalhadas, dicas gastronômicas, impressões sobre viagens e afins, 50 minutos se passaram num piscar de olhos. Nos despedimos de Elias – esse era o nome do moço – com abraços e satisfeitos por tê-lo conhecido, ainda que de forma tão inusitada.

- Cara bacana, né?

- É.

- Será que a gente ainda se vê?

- Não sei, quem sabe... o mundo é pequeno, né?

- É... – e, de braços dados, também deixamos a livraria, com a sensação de que levávamos conosco muito mais do que livros na sacola e um bom café no paladar.

E o que teima em não me sair da mente desde então é a expressão de surpresa no rosto do Elias, quando nos convidamos para dividir com ele sua mesa-para-três-ocupada-por-um. E me causa um certo desconforto, uma estranheza triste e reflexiva, a conclusão de que somos todos “Elias” em graus variáveis de solidão por opção. Talvez a correria do cotidiano tenha feito germinar nas pessoas um instinto subliminar de autopreservação diante da alucinada existência contemporânea, e isso tenha nos afastado uns dos outros a ponto de nos transformar em ilhas cercadas de ilhas por todos os lados. E nos esbarramos sem nos tocar, e nos olhamos de soslaio sem nos enxergar, e nos falamos sem nos dizer coisa alguma.

E assim, sem perceber, nos distanciamos de nossa essência gregária, e convivemos pacificamente com a ausência do outro, sem atentar para o fato de que essa é também uma espécie de “auto-ausência” – pois, ainda que neguemos consciente ou inconscientemente, carregamos conosco, ao longo da vida, a necessidade atávica de compartilhar, de dividir. A questão do espaço é relativa e, de certa forma, insignificante: há quem viva sua “vida-para-vários-ocupada-por-um” até mesmo no ambiente familiar.

Quem sabe um dia eu reencontre o nosso Elias em uma dessas esquinas da cidade – ou no cinema, ou num restaurante, ou num banco de praça, ou quem sabe naquela mesma livraria. Se o mundo é mesmo pequeno como dizem, não duvido que tornemos a dividir uma mesa e alguns bons minutos de nossas vidas. Enquanto isso, continuo acreditando que todo e qualquer lugar vazio é candidato em potencial para ser preenchido. E, igualmente, continuo acreditando que vale a pena preencher os meus – e os dos eventuais “Elias” que aceitarem dividir comigo suas tantas “coisas-para-muitos-ocupadas-por-um”.




(texto escrito em algum dia perdido de fevereiro de 2008. a lição da história, porém, permanece muito bem guardada comigo e ficará, ad eternum.)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Um quarto cor-de-rosa.




Estou fazendo um quarto cor-de-rosa para minha filha.

Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha sem sequer saber se ela gostará de cor-de-rosa. Eu mesma não gostava. Não sei se fez diferença na minha vida não ter tido meu quarto cor-de-rosa, e também não sei se fará diferença na vida dela. Mas faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque é o que as mães fazem: tentar construir um lugar bonito, seguro e colorido para os filhos, para onde eles possam voltar sempre, mesmo quando alguns sonhos e esperanças desbotarem e a vida parecer um filme melancolicamente preto-e-branco.

Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque, um dia, ela crescerá – e desejo que jamais se esqueça de que será sempre a minha menina. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque sei que o mundo não o é, e a tratará com rigor e a fará chorar, e desejo que as lembranças de sua cama quentinha, suas bonecas e, sobretudo, do amor incondicional que lhe dedicamos desde o instante em que soubemos que seríamos abençoados com sua chegada sejam como um doce beijo de boa noite a apaziguar diuturnamente seu coração. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque não espero que minha filha seja uma princesa – embora, para mim, seja exatamente o que ela sempre vai ser.

Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha, porque minha filha está construindo um quarto cor-de-rosa dentro de mim, repleto de lindezas e doçuras e sonhos. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque não posso fazer um mundo cor-de-rosa para ela e, mesmo que pudesse, não o faria – o que posso, e farei, é estar ao seu lado e segurar sua mão mesmo quando ela imaginar estar sozinha em sua caminhada, pois há jornadas que não podemos cumprir pelos filhos, ainda que sejamos capazes de dar um braço ou uma perna para poupá-los de certas dores. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque, além de beijá-la, abraçá-la, amá-la e estar/ser com ela incondicionalmente, é o que posso fazer. E porque fazer um quarto cor-de-rosa para minha filha é como erigir um lugar sagrado onde estaremos sempre juntas, resguardadas pelas ternas memórias dos nossos momentos lado a lado nessa existência.

Estou fazendo um quarto cor-de-rosa para minha filha. Não julgue, amigo querido, uma mãe por se esmerar em coisa tão aparentemente inútil e boba. Mães são assim – estão sempre a se esmerar em coisas bobas e inúteis para seus filhos amados. Construímos quartos cor-de-rosa a cada sorriso de um filho, a cada passinho, a cada vitória dele. Somos meninas aprendendo a crescer através do amor que a maternidade nos descortina, dia após dia. Talvez o quarto cor-de-rosa que estou fazendo para minha filha seja, de fato, para mim. Para você. Para todos nós. Como amor de mãe, que se irradia até onde entendimento humano jamais alcançará.

Estou fazendo um quarto cor-de-rosa para minha filha. E se você, querido amigo, um dia tiver a sensação de que não há mais aonde ir, fique à vontade para se aconchegar.