sábado, 24 de outubro de 2009

Entropia

Cansei de me esconder no topo da vida. Às vezes eu preciso mesmo de um pouco de sombra, dessa umidade reluzente que protege os meus braços do calor imposto pelo desejo de abraçar o mundo como se abraça um ente querido às vésperas de partir. Com amor. Com fúria. Com a saudade antecipada e incontida de quem não compreende paciência. Com a patética falta de jeito de quem necessita urgentemente e a todo instante se sentir arrebatado pelo próprio coração e há de ser hoje, há de ser agora. Às vezes eu preciso submergir. Eu preciso me esgotar. Eu preciso despencar em queda livre e cair com o peito desprotegido e arrebentar as mãos abertas contra as minhas feridas e ficar ali, exausta, até parar de respirar e então perceber num fôlego só que eu estou viva e que aquela dor mesquinha não é nada, é só mais uma dor mesquinha e inútil que, mais hora menos hora, irá se revolver sozinha na sua pobre e mesquinha e inútil condição de dor. Às vezes eu preciso daquela coisa de puxar o gatilho e disparar cautela contra a minha própria metralhadora giratória, e de ficar calada para ouvir o estampido que finalmente me convencerá de que aquilo que me tolhe definitivamente morreu. E, às vezes, eu preciso apenas ficar quieta, muito quieta, numa quase imobilidade absoluta, e nessa quase imobilidade absoluta sentir que as existências todas vibram frenéticas dentro de mim e me transbordam e não me cabem e estão ali, explodindo nos meus olhos: eles brilham.


terça-feira, 20 de outubro de 2009

01:01:01 (ou A Variável Oculta Atrás da Porta)



Eu tenho medo de ouvir qualquer som; é como se a vida falasse pela tua boca e não se engane, não é de ti que tenho medo e sim da angústia que me fala aos ouvidos quando o mundo vibra dentro da minha cabeça, é quase uma afronta essa continuação indiferente das coisas. Sempre ouvi dizer que paz fosse uma coisa escassa. A paz, talvez, esteja justamente na ausência, nesse não-estar tão premente e solícito, avesso à insistência de toda presença que não seja a sua própria. Mas sim, eu falava dos sons e igualmente não falava, falava de coisa diversa, provavelmente da eternidade em que se transformou cada minuto, anoitece e amanhece e anoitece e amanhece e a história parece se esparramar inteira no assoalho gelado de um tempo que anda em círculos e eu ando, vê bem, eu ando tentando encontrar uma rota de fuga mas é tudo tão hermético, tão hermético, tudo, tu, eu, não escapo de mim, eu quero, eu avanço e retrocedo e colho razões ácidas e as quero doces na minha boca, como pode. É o som do tempo que não passa o que definitivamente me assusta. Hoje alguém telefonou e perguntou por ti; o que eu diria? Acabei não dizendo muita coisa, apenas um “está bem” que poderia ser “não sei”, ou “queira saber de mim que sou quem está aqui do outro lado da linha, mas queira saber apenas do que me fere e que não consigo dizer porque me espeta a garganta e não sai, e me afoga e me faz morrer de várias formas menos daquela que realmente me aliviaria, portanto tire isso de mim”. Já tentei todo tipo de promessa. E pare de dizer que eu faço drama, que eu minto: isso é o teu orgulho te consumindo como a lança que transpassa o lado são de uma vaidade adoecida, não existo para ser teu oponente. Mas ando evitando ter juízo, é verdade.


domingo, 18 de outubro de 2009

Pedido

Decidi quebrar minhas próprias regras e trazer para cá esse texto da Tati Bernardi porque, ultimamente, não ando mesmo dizendo coisa com coisa. Talvez a necessidade de ficar calada seja o que preciso, enfim, para me dizer com mais propriedade.


Sem risinho eu mantive o pedido, fazendo dele algo mesmo. Um murro, você escolhe o lugar. É isso mesmo? Claro que não, seria terrível conviver com isso. Então espero do fundo da minha alma que você possa continuar ouvindo isso sem jamais me saciar. Mas era um minuto tão escuro de uma hora que nem existe, então, quis te dar essa honestidade que nem poderia ser contada pra não perder seu caráter. Eu queria mesmo era um murro. Não o dado porque se ama, o dado com a secura e a realidade de não significar nada. Pra ver se mata ou acorda isso que, também em nome da realidade e da secura, não vou significar.

Isso que queria um murro pra doer onde se fala tanto de uma dor que não se sabe ao certo onde bate. Um murro na boca. Isso que precisa do limite da força pra suportar caber em alguma aresta que sou eu mesma. Isso de doer pra ser bom, que podemos fazer se no fundo funciona também assim?

Isso de apenas ser um murro, algo tão absurdo. Algo que acaba sendo alguma verdade nunca dita causando assim tantos problemas ditos até que todos não se suportem mais. Se as pessoas simplesmente pudessem pedir, assim, vai, me dá um murro, quantos jantares e viagens e noites e festas e conversas e histórias seriam salvas.

Tá, eu vou metaforizar, afinal, é assim que acabo cabendo no que sinto ou ao contrário. Eu queria um murro massagem cardíaca. Queria um murro reboot de cabeça. Um murro pra sentir aquele salgado quente azedo doce na boca, pra ser vampira de mim, fome de mim, um murro pra me sentir e a violência que me amedronta tanto não ser culpa minha. Um murro para eu amar o mal fora de mim, mas sempre precisando dele. Sempre lutando pra segurar o sangue na boca ainda que seja inevitável me escorrer vermelha em cima de qualquer coisa que me faça precisar de ar. O mal arrebentando minha boca e dentes e cordas vocais sempre segurando tanto potencial pra dizer e estragar tudo e ficar livre e querer dizer pra resgatar tudo e ficar livre. E nunca se fica livre porque nunca se fica bem. Um murro pra ter o que cuspir, o que costurar, o que esperar. Pra ver a ferida e não ser a ferida. Pra cuidar de uma ferida que pode se ver e esperar. Pra poder ficar quieta. É isso. Um murro na boca. Bem dado. Para eu ficar quieta. É isso. Eu sou um marido que não agüenta mais sua mulher. Eu não agüento mais a minha mulher. Cala a boca!

Não é sexual, tapinha, coisa de gente que escuta samba e faz piada com pandeiro. Não é doença protegida por açúcar e língua. É raiz à seco. Não é pra exorcizar a merda e correr pro banho e correr pra festa e correr. É murro de cair no chão e enxergar cantos distorcidos de teto se fechando. É um murro bem dado, numa rua sem árvore com flores amarelas. Em algum lugar onde as pessoas falam sueco e escutam húngaro. Em algum lugar onde o azul defunto e o branco dia nada não seja efeito de cineasta perturbado. Um murro terrível, impossível de perdoar, impossível de ser amor, impossível de continuar. E então eu poderia dormir ao seu lado. Cansada, ensangüentada, sem nenhuma espera, acabada, sem amor, sem dente, sem sangue, sem ser gente, principalmente sem ser mulher. E então eu poderia só porque não correria mais o risco de levar um murro.

domingo, 11 de outubro de 2009

Madrugada

Ele disse que aquilo não se repetiria. Por isso, quando, interrompendo o silêncio sonolento da madrugada, o telefone tocou, senti o corpo estremecido pela sensação brusca da iminência desagradável de nossos pés nos levando em direções opostas.

"Você é a mulher da minha vida."

Esperei que ele não atendesse; ele atendeu. Levantou-se da cama e, em pouco tempo, vestiu-se e apanhou suas coisas. Observei-lhe a movimentação enquanto o ouvia dizer que alguém, um amigo, precisava de uma carona.

- Você volta?
- Preciso saber o que fazer com ele, instalá-lo, essas coisas.
- Você volta?
- Volto. Só não sei a que horas.

"Você tem um rosto lindo. Mas visto daqui, desse ângulo... é o rosto mais lindo que já vi."

- Agora já é 01h30min.
- Não sei quanto tempo vai levar.
- Pra instalar alguém?

"- Escuta, me responde uma coisa.
- Claro.
- Casa comigo.
- Caso.
- Falo sério.
- Eu também. Mas se for pra casar, que seja agora.
- Ok.
- Ok. Dá a sua mão.
- Mas não temos aliança.
- Dá a sua mão."

- Já conversamos sobre isso.
- É.

Já havíamos conversado sobre tanta coisa. A verdade é que nenhuma daquelas tentativas de conciliação de ânsias e gênios nos levara a um entendimento real. Ele jamais cederia. Eu jamais me adaptaria. Conviver se tornara tenso, a lembrança da leveza dos primeiros tempos era tão sufocante quanto a certeza de que as coisas jamais retomariam aquele rumo. Eu não sabia o que ele estava pensando, eu não sabia o que eu estava pensando: o dia fora bom, mas tudo o que eu sentia era uma frustração estranha, cansada. Cansada. Eu estava cansada. Ele estava parado diante da porta, me olhando.

- Você volta?
- Venho de manhã. Cedo. Levo você para o trabalho.
- Não precisa.
- Eu disse que venho.
- Eu ouvi. E disse que não precisa.
- Você está começando tudo de novo.
- Não. Você está começando tudo de novo.
- Eu amo você.
- Você volta?
- Vou dizer pela última vez. Preciso atender o cara. Venho de manhã, tomamos café, levo você para o trabalho. Pode me esperar.
- Não precisa. De manhã, não precisa.

Ele deu meia-volta, entrou no carro e se foi. Eu também já havia partido.