Eu sou aquilo que o mundo não vê. Um rosário de brigas compradas, um calhamaço de papéis rabiscados com palavras inventadas, a mensagem na garrafa vagando ao sabor dos caprichos de um mar revolto. Eu sou o mar.
Minhas carnes já não convulsionam diante da dor. A dor é corrosiva, mas necessária – consome, mas alimenta; revolta, mas, por vezes, conforta; implode minhas forças e desatina meus sentidos, mas é da dor que nasce a beleza mais pura, a beleza inimaginável na qual me refugio, na qual busco a matéria de meus sonhos e anseios impronunciáveis, beleza diante da qual me prostro humilde e confessa de meus segredos.
O peso sobre meus ombros me faz cair de joelhos; feneço, me fragmento em incontáveis pedaços, me imolo em sacrifício na pira sagrada e imaginária de minhas verdades relativas – e me redescubro em meio às minhas próprias cinzas, maior, mais forte, mais urgente. Eu sou assim, fênix, meu ponto de partida e de chegada. E meus anseios todos me levam a respirar na superfície tempestuosa de mim mesma.
Eu sou assim, particulada e inteira, enigma e resposta, idas e vindas, vida que anda em círculos na linha reta traçada entre os vértices do infinito. Atemporal, adimensional, de imprecisão incalculavelmente exata. O olho do furacão, o desfiladeiro, o oásis, o estar, o buscar. E me perco em minhas entrelinhas, audaciosa e voluntariamente, leve e tênue, porque nelas sou também o meu reencontro.
quarta-feira, 30 de abril de 2008
Fênix
Atualizações e Presentes
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Dos Vícios Perdoáveis
E dizer isso não é desmerecer a paixão, nem tentar fazê-la parecer menos saudável e necessária. Mas é verdade que paixão vicia. Vicia tanto que ninguém sabe o que fazer quando, de repente, percebe que a cartela está vazia porque o miraculoso e costumeiro comprimidinho acabou no dia anterior.
É exatamente como um tarja-preta: doses individualizadas, porque há quem não tolere altos teores da substância assim, de supetão, circulando pelo organismo; diferentes formas de apresentação pois, enquanto algumas pessoas são capazes de engolir cápsulas e drágeas numa boa, outras precisam beber soluções, xaropes e emulsões, gota a gota ou de colherinha, e existe quem só funcione com a droga lançada sem delongas na corrente sanguínea, direto na veia. E os efeitos colaterais, ah, os inevitáveis efeitos colaterais: boca seca, sudorese profusa, tremores, visão turva, perda de apetite, rubores, vertigens, palpitações, fala embotada, insônia, episódios febris, delírios. Sintomas às vezes incômodos, fora de hora, de um descabimento homérico e transtornante, sem falar no perigo iminente da dependência – mas o remédio é dos bons, deixa a gente mais leve e disposta, vale a pena correr os riscos.
A paixão é, ao mesmo tempo, antidepressiva e ansiolítica, e os efeitos são imediatos. A pele fica mais viçosa, a circulação mais eficiente, o humor menos lábil, a libido mais aguçada, o raciocínio mais rápido, a gente agradece aos céus o bendito “doutorzinho” – ou “inha” – que acertou em cheio no tratamento, e não abre mão da abençoada prescrição por nada nesse mundo. Mas a “paixonina” é ainda mais psicotrópica que a mais potente das anfetaminas: circula livremente pelo organismo e estabelece circuitos de reentrada nos sistemas nervoso e cardiovascular sem sofrer a ação de nenhum mecanismo inibitório, e não há sistema de depuração enzimática que seja capaz de clivar as suas moléculas. É fácil se intoxicar de paixão. Difícil é distinguir com precisão o limite entre o terapêutico e o patológico. Não há antídoto contra a paixonina. O único expurgo cabível é o tempo, mestre na arte de eliminar os excessos e ressacas de paixões tumultuadas e inadvertidamente exacerbadas. É sentar, segurar a cabeça – e o coração – entre as mãos e esperar passar.
E passa. Mas há que se reconhecer a dependência e, sobretudo, há que se ter vontade e disciplina para lutar contra ela, pois as recaídas são freqüentes, massacrantes e terrivelmente... apaixonadas. É um longo e penoso caminho até que o dependente se torne definitivamente capaz de dizer “estou limpo”.Só por hoje, ao menos por hoje, ainda hoje limpo. A paixão se parece deveras com um remédio tarja-preta. É bom, é ótimo ter paixão circulante no sangue – em níveis séricos aceitáveis pelo Ministério da Saúde Sentimental. A gente tem que sorvê-la em doses quase homeopáticas, mas sempre bate aquele frisson de tomar o frasco todo pra curtir o barato lisérgico das paixões cavalares. Overdoses de paixão são tão fascinantes quanto constantes. Talvez pelo medo de seguir à risca as recomendações e sentir, como efeito único, apenas uma coceirinha morna e desmilingüida no meio do peito – até terminar o frasco e descobrir, num pasmo atônito, que a receita se perdeu.
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Intermezzo Noturno
Eu disse sair no lucro? Engano: para minha surpresa e indignação, não havia sequer um mísero pote de capuccino vagando pelo meu reino. Lembrei-me da loja de conveniência anexa ao posto de gasolina localizado em frente ao prédio onde moro; paciência, era sair no meio da madrugada para satisfazer minha vontade sobrenatural – afinal, não há empecilhos para deter um convicto apreciador de cafeína. Enfie-me na minha batida calça de moletom, tão cinza quanto o céu de uma cidade grande na hora do rush, arrumei os cabelos em um coque preguiçoso, enfiei uns trocados no bolso – o suficiente para comprar o que desejava, pois não pretendia ser chamariz para os gatunos notívagos – e parti em busca do meu tesouro. O frio da noite entorpecia meu corpo e aquecia ainda mais a vontade de uma bebida fumegante; apressei os passos e, quando já tocava a porta de vidro da loja, ouvi aquela voz.
- Dá uma moeda, tia.
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Quarto Escuro
Nessas horas de pensamentos vazios e espírito repleto, alheado das paredes e cercos, é absoluta minha solidão – pois, aqui, tampouco eu permaneço comigo. E nem sei por onde ando, ou por quanto tempo estarei ausente de mim: sei apenas que é bom estar nesse lugar tão ignorado e de acolhida assim fiel. Abandono-me de tal maneira a esse nada-ser – ocaso das idéias, berço das sensações – que é impossível não crer que o que me falta seja justamente o que me completa.
Abstenho-me de qualquer consciência inclemente, inoportuna, e me permito, assim, caminhar com os pés mergulhados nessa falta dissimulante – a ignorância é, por vezes, alívio, elo das minhas metades desencontradas. E pouco me importa se a letargia que me sobrevém o faz com pretensões felizes ou tristes; a felicidade não é inócua – é provável que fira ainda mais profundamente que a tristeza, e a ambas respeito, e temo. Porém, embora as tema, não as repreendo: a elas me entrego com a mesma devotada e servil docilidade, querendo alcançar-me sem saber onde, como sombra desavisada cujo dono desnorteou-se para rumo não percebido. É esse o meu eu, nessas horas mortas. Perambulante e ignorada, mas inescapável de mim.
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Milagreiro
Dona Teresa o recebeu como a um filho, o menino era um anjo, o sorriso tranqüilo pairando no rosto feito maresia. Mas estranho, não falava sequer uma palavra, apesar de compreender absolutamente tudo que lhe diziam. Ainda mais estranha era sua capacidade de se fazer entender apenas com o olhar, suas maneiras delicadas, sua serenidade inexplicavelmente contagiante... a mulher arrumou-lhe roupas e um lugar para dormir; como os dias se passassem sem que ninguém surgisse à sua procura, Zé da Pedra e dona Teresa não viram mal em ficar com ele, a quem já havia se apegado irremediavelmente. Porque não sabiam seu verdadeiro nome, e porque sua aparição se dera justo no dia desse santo, passaram a chamá-lo de Jerônimo.
Jerônimo era o sol que aquecia o casebre do pescador e sua esposa. Acompanhava o velho Zé da Pedra todas as manhãs até a Pedra do Arco e aguardava seu retorno à tardinha. Permanecia sentado sobre as rochas, observando os barcos de pescadores em seu balé sobre as ondas; às vezes fechava os olhos e, como que absorvido pelo cheiro do mar, parecia hipnotizado por uma espécie de transe. Foi assim que dona Teresa o encontrou no dia em que descobriu que o menino mudo sabia cantar. E cantava bonito de se ouvir, bonito de se sentir... Cantava e seu canto ecoava pelo mundo levando consigo a pureza da alma do menino. Dona Teresa o ouvia estática, silenciosa, entre lágrimas. Ele calou, abriu os olhos, sorriu para ela, a envolveu em um abraço terno. Voltaram para casa e as palavras eram desnecessárias.
As coisas estavam diferentes desde que Jerônimo chegara, dona Teresa agora percebia. Os homens voltavam do mar com as redes transbordantes de peixe; há tempos ninguém caía enfermo, as desavenças, outrora corriqueiras, faziam parte do passado. As crianças nasciam saudáveis, as mulheres tinham bons partos, os homens andavam apaziguados. Até o tempo, tão atroz naquela época do ano, subitamente se transmutara. Diariamente Jerônimo presenteava a vila com sua voz encantada – e era ele, dona Teresa tinha certeza, o responsável por aquela enxurrada de bênçãos. O dom do menino igualmente não passara despercebido aos demais habitantes do povoado – as pessoas afluíam à casa de dona Teresa à sua procura, muitas das vezes apenas para serem tocadas por ele. Seguiam-no até a Pedra do Arco para se embriagarem com seu canto feiticeiro – e choravam diante dele, se abraçavam uns aos outros, sentiam o amor fluir por entre seus corpos de gente crédula.
Houve dias a fio, porém, em que o pequeno silenciou. As redes retornavam vazias do mar; a discórdia insinuava-se sorrateira no coração das gentes, as moléstias ressurgiam impiedosas, tornando a castigar a carne de moços e velhos. O povo, possuído por uma irritação nervosa e insana, não compreendia o porquê daquele mutismo – e, em uma tarde de incontido desespero, invadiram a casa de Zé da Pedra em busca do menino milagreiro. Dona Teresa insistia em dizer que Jerônimo desaparecera, o choro lhe embotando a voz e as idéias, o nervosismo se agigantando diante da fúria dos invasores. E, de repente, o canto... o arrebatamento indescritível se apossando de suas almas através daquela voz devastadoramente bela.
Guiadas pelos sons as pessoas o encontraram na Perda do Arco, os olhos fixos no mar, os últimos raios do sol que se deitava no horizonte refletindo-se na sua tenra e alva pele de criança. Zé da Pedra fez menção de aproxima-se; o menino, com o rosto transfigurado por uma expressão de bondade infinita, sinalizou para que o velho pescador permanecesse onde estava. Um misto de medo, respeito e encantamento tomara conta daquela gente. O menino fechou os olhos e, instintivamente, todos os outros repetiram o gesto. E então Jerônimo cantou... doce, sublime como jamais havia cantado, sua voz lhes invadindo corações e mentes, mudando suas vidas para sempre. Durante uma fração incalculável de tempo permaneceram entorpecidos por aquele encanto; ao abrirem os olhos, porém, perceberam que o menino havia desaparecido.
Foram dias, semanas, meses de incessante e vã procura. Dona Teresa amofinou, quase morreu de tristeza; Zé da Pedra, melancólico, atracou o barco na praia e deliberou não mais entrar no mar. O povo da vila se uniu nas promessas, orações e nos desvelos com o velho casal. As coisas lentamente entravam nos eixos; as pessoas, aos poucos, percebiam a herança do menino. Era a solidariedade a semente que aquela criança havia plantado, e que só agora, na sua ausência, começava a dar os primeiros frutos.
Jerônimo jamais tornou a ser visto. Uns diziam que era anjo; outros diziam que era sonho. E aquela vila de pescadores jamais tornou a ser a mesma: seus habitantes haviam, finalmente, aprendido a se amar. A vida havia se tornado próspera, o mar era pródigo e farto, Deus os abençoara pela generosidade que agora era autêntica e gratuita. Quem passa por lá ainda ouve falar nos milagres do menino – e na doce voz que, todas as noites, acalenta o sono daquele povoado.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
(In) Evitável
O que eu quero é tanto – tão simples, porém, que cabe no hiato entre o teu beijo e o meu lábio. E eu, de dedos entrelaçados com a vontade do inevitável, espero e conto, um a um, os segundos esparramados a esmo pelo piso frio do quarto. Porque não há dia, nem noite, vês? Há somente esse silêncio macio, voz rouca do tempo esquecido do fardo de ser tempo, e a languidez da boca tua calando o meu corpo. Não há dia, nem há noite.
Adormeço o sono perdido na boca com gosto de paixão ardida. Vem; deite aqui. Mas, por favor, não durma ainda – preciso encontrar a mim na tua íris durante outra interminável vez. Preciso repousar no teu corpo quieto, eu, flor penetrada da tua semente alvorecida. Deite aqui, e seja comigo por todo esse hoje de paz impune. Fique, e me ofereça o teu peito, teu coração batendo sereno. E me abrace, apenas – e me absorva inteira nesse abraço, e se inunde de mim, e me deixe tatuar esse momento na tua pele como um hálito bom de desejo infindo. Eu me perdi no sorriso dos teus olhos. E sim, há volta, mas abro os braços – os teus – e neles fico.
* O álbum de estréia de Norah Jones, Come Away with Me, foi lançado em 2002 - um álbum jazz- piano com um toque de soul/folk, que obteve um grande êxito vendendo dezoito milhões de cópias em todo mundo e pelo qual recebeu oito prêmios Grammy.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Vampiros
um aperto no coração, uma irremediável aridez
de pensamento que nenhum estímulo da
imaginação seria capaz de elevar ao sublime.”
(Edgar Allan Poe em A Queda da Casa de Usher)
O mundo está infestado por vampiros.
E essa não é uma afirmação fundamentada em terrores noturnos originários da infância, nem a verbalização de uma realidade alternativa resultante de histórias sanguinolentas bombardeadas sobre um indivíduo influenciável aficionado por horror tales. É um alerta sobre uma praga recalcitrante e dissimulada que, há séculos, vem fazendo vítimas entre a humanidade desavisada. Vampiros. Por toda parte.
Engana-se, porém, quem acredita que os sugadores do novo milênio perambulam por aí com os caninos perfurantes e retráteis à mostra ou com sua sede de sangue escancarada na palidez mortiça do rosto, esgueirados nas sombras sob pena de morrerem estorricados ao sol. Nada. Os congêneres contemporâneos de Drácula e cia. desfilam entre nós em plena luz do dia – alguns bronzeadíssimos, com dentes de fazer inveja a qualquer modelo de propaganda de aparelho ortodôntico. Dormem em camas confortáveis (há, inclusive, os que preferem os modelos Box) e muitos deles são alucinados por torradinhas de alho, brócolis ao alho e óleo e outras iguarias preparadas com esse elemento outrora visceralmente abominado. Desenvolveram imunidade completa e permanente à antes tão temida água benta: alguns são batizados e, sacrilégio dos sacrilégios, até comungam nas missas dominicais.
Os vampiros do século XXI perderam a prerrogativa da imortalidade e tiveram sua expectativa de vida drasticamente reduzida – hoje vivem tanto quanto qualquer ser não-vampiresco e morrem, também, pelas mesmas causas. Talvez por isso sejam infinitamente mais vorazes que seus antepassados e tenham modificado os próprios hábitos alimentares ao longo da sua evolução. Já não vivem à caça de pescoços indefesos e suas carótidas palpitantes, túrgidas de sangue quente – se tornaram mais discretos e perspicazes e, em razão disso, muitíssimo mais perigosos: os neovampiros são, por excelência, exímios praticantes do predatismo de energia vital. E não o fazem metamorfoseados em morcegos ou cadáveres andantes, mas disfarçados sob carapaças aparentemente inócuas, acima de qualquer suspeita: alguns são capazes de mimetizar um pseudo-halo de santidade e, quase sempre, vampirizam um indivíduo – ou um grupo inteiro, dependendo da periculosidade do predador em questão – por longos períodos, sem que as vítimas se apercebam de sua triste condição de base da cadeia alimentar. E vampiros, quanto melhor nutridos, mais prazer têm em se refestelar no menu: a vítima vai ficando pálida, enfermiça, magricela, feridenta, azarada, neurastênica – e o vampiro em cima, porque vampiro que se preza rói o osso até o fim. Vampiro que é vampiro moderno não sai por aí arrebentando o pescoço de ninguém: ele arrebenta os bolsos, a saúde, a paciência, a sanidade da pobre criatura que escolheu para parasitar.
Vampiro que é vampiro moderno sabe que esse negócio de canino ensangüentado já era: toda a sua fome furiosamente destruidora está concentrada nos olhos. Neovampiros têm o olho gordo. Gordo não. Obeso mórbido, hipercalórico. Toneladas e toneladas de pura sucção espiritual permanentemente irradiadas de suas irisinhas malévolas. Sim, eles secam pimenteiras. Sim, eles são mais eficientes que o mais negro dos vodus ou que qualquer costura “overloque” na boca do sapo. Coisa de aterrorizar até mesmo o próprio Nosferatu e de causar pesadelos regados a vergonhosos litros de xixi na cama a Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro – aquele mesmo, cuja vingança “será malígrina”. Que ninguém duvide de sua existência – eles estão por aí, disfarçados de gente comum, prontinhos da silva para abocanhar o primeiro ingênuo disposto a ignorar sua malignidade potencial. Vampiros não são coisa do outro mundo. São deste aqui, mesmo. O mundo está infestado por vampiros. E quem estiver lendo esse aviso, muito cuidado: neste exato momento, pode haver um deles bem perto de você...
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Sete Segundos
"Era como o som dum sino que,
de vibração em vibração, sobe do vago ao apogeu. "
(D. H. Lawrence em O Amante de Lady Chatterley)
Ao som de Elliot Smith - Between the Bars
Permitiu-se encontrar, submissa, pelo dedilhar deslizante a lhe buscar, vez ou outra, os ombros displicentemente resguardados pelo tecido fino da blusa, já completamente entregue à mão que escorregava, sorrateira, enrubescida por ousadia crescente, para a confluência de seus desejos. A cabeleira vasta, densa, assim tão subitamente penetrada, espreguiçada inteira sobre a pele pulsante do outro, ávida daquele contato tão novo e, a despeito disso, tão irracionalmente vital, derramava-se obediente e desapressada por sobre o encosto encarnado da poltrona, rasgando o espaço como um par de olhos em súplica. Nem viu-lhe o rosto, nem viu-se em outro instante a não ser na palma da mão daquele carinho-posse, posse-carinho, corpo e coração sabendo o que era, razão não querendo saber, sintonizada no desalinho dos cabelos dançantes naqueles dedos como encaracolada e castanha ventania.
Deixou-se ficar ali, soçobrante no carinho genuíno e intenso, voluntariamente subjugada pela intimidade despretensiosa nascida de tão simples gesto; até que, em um movimento imprevisível de audácia involuntária, não mais que um dedo pousou-lhe beijo leve na nuca – e o arrepio que se seguiu a esse sutil contato lhe abraçou o corpo inteiro de forma tão violenta, que os músculos todos se contraíram em um espasmo único de indescritível prazer, e os olhos se fecharam umedecidos de larga e confessa ternura. Virou-se em vontade, e vontade tamanha que se impôs sobre a lógica: ali permaneceu sonho interminado, dona de um universo particular e conhecido apenas seu, carícia jamais se desfazendo, olhos jamais se abrindo, sentimento todo do mundo nela enredado, fio a fio atados no sempre, e quem dirá que existe o sempre. E quem dirá que não existe.
domingo, 6 de abril de 2008
Sobre Amores Possíveis
Ah, um amor daqueles.
Amor. Daqueles que a gente sente e não sabe o porquê, só sabe que é bom sentir sem tentar entender o motivo ou a dimensão. Daqueles que a gente respira, pelos quais se perde o fôlego, que fazem cada instante parecer o primeiro – com os mesmos arrepios, o mesmo frio na barriga, o mesmo brilho nos olhos, o mesmo sorriso bobo e gratuito estampado no rosto. Amor. Daqueles.
Você liga a tevê, ouve uma música, encosta o carro em frente à banca de revistas, faz um pit stop para um café ou para uma conversa sobre trivialidades, atravessa a rua. E ele está lá. Ele, o tal do amor, insinuado nas entrelinhas, capcioso, pronto para dar o bote. E é folgado, o bandido. Vai chegando, vai entrando, fazendo de casa da mãe Joana o coração distraído que esqueceu a porta aberta – ou qualquer mínima e incauta fresta por onde ele possa escorregar, pois é ladino e conhecedor de todas as manhas de driblar as vigilâncias. Uma vez que esteja dentro, inútil, completamente inútil pedir ou mesmo esperar que vá embora: vai ficando, fazendo festa, estatelando-se ora ruidoso ora silente no peito que escolheu – e este, sem alternativa, acelera, voa, sonha, deseja, arde, sente. Ama.
E de tão intempestivo e inconseqüente, um amor daqueles, às vezes, enfia os pés pelas mãos, e se machuca, e dói, e descobre que, apesar de imenso e nascido para se doar, não há sentindo em ser Amor sozinho. E o peito-lar-de-amor sofre junto. E o fulano-dono-do-peito-lar-de-amor, esse nem se fala, tão desconcertado fica sem saber o que fazer com tudo o que guarda dentro de si e que existe não para ser guardado, mas para vicejar dentro do outro – e nem sempre o outro distrai o próprio coração a fim de deixar o amor entrar e tomar conta. É assim... nem cego, nem surdo, nem estúpido, mas teimoso e alheio aos riscos, amor e dor caminham paralelos vida afora – e é tamanha a proximidade em algumas vielas estreitas que se torna inevitável darem-se as mãos.
E o coração se fecha. E o amor adormece. Algumas vezes, por tanto tempo que o fulano-dono-do-peito-lar-de-amor até esquece do inquilino outrora tão irrequieto, ou crê que ele se mudou, ou mesmo que morreu. O que ninguém se lembra é que amor doído, machucado, precisa dormir para curar as feridas – mas dorme ali, escondidinho em um canto ignorado do coração, e morrer não morre não. Um belo dia acorda, seja sossegado como um céu sem nuvens, seja incontrolável como um furacão – e tamanha a distração de quem o cria morto, que não há reação diante desse despertar inesperado. O amor está lá novamente, inteiro, pulsante, incontrolável e rebelde. Lindo. Pronto para ser vivido – e sentido – outra vez.
E embora ainda tenha nas pontas dos dedos a textura da pele da dor, o amor é assim. Uma vez que nasça e invada um peito, ali permanece mesmo quando não encontra recíproca – e se metamorfoseia, e se recontextualiza, e se redimensiona sempre e sempre, até que encontre quem o mereça, quem o receba sem reservas ou senões. O amor é assim. Nasce para ser amor, e não sabe ser outra coisa.
Ah, um amor daqueles...
quinta-feira, 3 de abril de 2008
VOZ
(Clarice Lispector)
Ao som de Sia - Don't Bring Me Down
Por tanto querer dizer, me estampo subliminar nas entrelinhas da minha mudez. É lá que estou, completa e desafogada de pontuações, clara e veemente como uma resposta que independe de pergunta para ser resposta. Para lá confluem todas as inflexões da minha voz dessilabada, desse timbre particular que nasce na garganta do olhar que tudo diz. Não me valho dos sons para existir – mais do que som, existo signo e movimento.
Mais do que som, existo percepção. É na sutileza dos detalhes que me declaro, no branco dos olhos que me passo a limpo. E assim – olhando, sentindo, vivendo, somente – me vejo sendo, e sigo não sabendo ser de outro jeito e, tampouco, querendo. Crendo-me aquém da oralidade e, por isso mesmo, tão além – embora, por tanto crer, às vezes desacredite nas minhas descrenças e acabe por me dissolver em palavras, fazendo delas a catarse natural e inevitável dessa atribulada convivência comigo mesma. Mais do que som, signo, percepção, movimento, existo algo ainda inominado, oração muda que queima incendiando o dizível para florescer significado intenso. Eu, mulher de essência anônima e despalavrada, digo em silêncio. Digo, apenas.
terça-feira, 1 de abril de 2008
CTRL+ALT+DEL
estou neste mundo terreno, onde fazer o mal
é muitas vezes louvável, e fazer o bem, algumas vezes,
foi considerado ato perpetrado por louco perigoso.”
(Lady Macduff em Macbeth – W. Shakespeare)
Há dias em que eu desejaria deletar alguns dos meus próprios sentimentos. Surpreendentemente, os arquivos destinados à exclusão seriam não aqueles de maior vileza – mas aqueles mais elevados, mais nobres, cuja natureza imaculável se constitui em empecilho moral diante das tentativas de insurreição do meu alterego anárquico, permanentemente em id mode, contra seu arqui-rival: meu imperturbável e quase monástico superego.
Eu deixaria de acreditar. E ir-se-iam as esperas e esperanças, e até mesmo algumas crenças, dissolvidos que estariam seus significados na mais invulnerável das incredulidades – a de quem não acredita por convicção. Poupar-me-ia, benção das bênçãos, de confiar e, finalmente, passaria incólume pelas frustrações e desencantos. Teria, é verdade, de aprender a viver sem a euforia pueril das expectativas, aquelas, as expectativas que são o sentido maior de tudo que diz respeito a elas e, principalmente, do que não diz respeito a elas. Um preço razoável a ser pago para existir intransitivamente.
Eu deixaria de oscilar entre a perplexidade e a ojeriza quando dos inevitáveis confrontos com as grosserias, leviandades, deseducações e outras mediocridades tão características de quem ainda não descobriu que a estupidez é uma viagem sem escalas para a mais completa e amarga solidão. Abster-me-ia de nutrir piedade pelas personalidades turvas e infantilóides e cortaria, de uma vez por todas, os pulsos às obliqüidades; feriria de morte a covardia das indiretas que me são oferecidas aqui e ali – e as abandonaria, moribundas e exangues, ao sabor de sua própria nocividade. Experimentaria uma anérgica indiferença diante das incompreensões, blindar-me-ia com a couraça das distâncias olímpicas para que não mais me alvejassem os egoísmos e egocentrismos daqueles que se ufanam da própria pequenez, full time e loucamente enamorados de seus umbigos.
Eu deixaria de querer bem. Simplesmente deixaria. E pouco me importariam as eloqüências do não dito, não feito, não quisto. Os amigos cuja amizade pontilhada de lenitivos jamais teve fôlego para transcender a infeliz condição de "pseudo". Um estalar de dedos e adeus, saudades, adeus, lembranças, adeus, paixões... Adeus, coração saltando no peito. Adeus, coração. Peito, adeus. Sem mágoas, sem tristezas, sem decepções... e sem alegrias, nem amores, nem todos esses detalhes sentimentalóides, idílicos e nada práticos que eu já não saberia compartilhar e, pensando bem, compartilhar para quê? É certo que eu perderia também as amizades verdadeiras – pois alguém sem coração é incapaz de separar joio e trigo. Paciência – todo remédio tem inevitáveis efeitos colaterais. Ao menos eu já não sofreria.
Nesse dia, eu deixaria de me importar. Deixaria de me preocupar. Reiniciar-me-ia livre do peso dos tantos arquivos corrompidos e inúteis que abarrotam minha exaustivamente solicitada memória emocional. Quando esse dia chegasse, eu, enfim, seria... seria... eu seria... eu seria?
Por sorte, alguns dias nunca chegam.