domingo, 30 de novembro de 2008

Eu Acredito.

E ponto.

Soundtrack: Clap Your Hands and Say Yeah! - Let the Cool Godess Rust Away



Quando digo eu acredito, o que sai da minha boca subverte o óbvio e dá as mãos a uma pluralidade surpreendente, às vezes ininteligível, de sentidos; e entre não duvido e tenho fé cabem várias de mim, todas carregadas dos meus sotaques, e vícios, e signos, todas entrelaçadas ao que sinto cada vez que respiro fundo e me reconheço – e me recomeço.

Eu acredito pode ser calado: abraço quente de calor colado ao corpo, ou um silêncio pontuado de pequenos gestos apaziguando as exacerbações da minha alma anárquica. Eu acredito pode ser calado, nunca mudo, nem cego – pois eu acredito pode ser, também, eu vejo e eu desacredito em quem diz que não vê. Eu acredito pode ser os meus olhos cheios de riso ainda que eu chore – pois eles não se turvam e sempre brilham, e vêem através. Eu acredito pode ser eu amo, assim, um amor intransitivo. Um amor intransitivo e, apesar de uno, um amor plural, desses que desobedecem as semânticas, transcendem aforismos, rejeitam silogismos: meu amor é linguagem outra, própria.

Eu acredito pode ser eu vou – me dou o direito de não renunciar ao próximo passo. Eu acredito pode ser eu posso. Eu acredito pode ser eu quero. Eu acredito pode ser é meu. Eu acredito sou eu parada no meio da rua observando rostos desconhecidos que jamais esquecerei, sou eu rabiscando no ar as palavras que invento, sou eu aqui e ali, particulada, sem me perder de mim, sem me negligenciar ou diminuir – pois eu acredito, antes de qualquer coisa, é sempre eu acredito em mim. Eu acredito sou eu cansada, ferida, coberta de receios, às voltas com meus descontroles, e cruzes, e monstros, mas de pé. Eu acredito pode ser – e invariavelmente é – eu vivo. E, seja como for, eu acredito.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Um Breve Olhar Mememizado Sobre F. em 52 Frases de D.


Sountrack: Edwin Collins - A Girl Like You


1 - F. é magra mas (sempre) acha que está acima do peso.
2 - Em 2008 passamos 43 horas juntos. (vc contou??)
3 - Dessas horas mais falávamos do que prestávamos atenção na aula.
4 - Por causa disso levei uma bronca, estávamos discutindo a reforma gramatical (que ela acha besteira) da língua portuguesa (mas Günter, era ela quem estava falando).
5 - F. tem um segundo nome que começa com D., será coincidência?
6 - eu criei uma personagem chamada F., na verdade era a própria F.
7 - 7 era o número dela na chamada da turma, sei porque eu era o 6 querendo ser 7.
8 - também criei duas outras personagens baseadas em F.: uma maga curandeira chamada de Tesra e uma moça capaz de criar sonhos e atrair as pessoas para eles chamada de Caliopede.
9 - Chamo-a particularmente de musa.
10 - ela é canhota (me too).
11 - ela é a melhor escritora que já li.
12 - fumamos um cigarro juntos, eu não sabia que ela fumava. (aquele foi o primeiro e último cigarro, D.)
13 - ela não vive sem rock.
14 - todos os perfumes se acomodam perfeitamente a ela.
15 - Koray já a conheceu e Páris se apaixonou por ela.
16 - vivemos marcando encontros irrealizados.
17 - ela tem compulsão por tirar fotos, estou eu lá parado e lá vem ela com um flash.
18 - F. e eu somos contemporâneos um do outro ( que sorte a minha).
19 - Se ela fosse um animal seria um gato.
20 - se ela fosse um ser místico seria uma bruxa ou uma fada, mas quem sabe os dois juntos?
21- a conheci quando eu tinha 21 anos ou era 20?
22 - ela detesta rpg (por enquanto).
23 - já a retrataram em um mangá.
24 - ela é médica. Pena que não seja cardiologista...
25 - ela não gosta de médicos ou de ir a médicos.
26 - ela tem a aparência da mulher paraense, as mulheres mais lindas são as paraenses.
27 - F. é linda.
28 - F. é cafeínômana/cafecólatra, mas só os grandes são.
29 - Ela trabalha na cidade em que moro.
30 - ela mora na cidade em que eu estudo.
31 - ela ainda não me devolveu o Drummond.
32 - ela é a mulher mais inteligente que conheço pessoalmente.
33 - F. ama os animais, gosta de ler e tem cultura.
34 - F. é para casar.
35 - F., quer casar comigo?
36 - imagina só, F.D.B esposa de D.J.V.
37 - esquece os dois últimos, F.
38 - eu já a cantei com Eduardo e Mônica.
39 - aliás, uma vez a chamei de Mônica e ela achou que eu tinha errado o nome.
40 - Um dia vamos ter um filho ( um labrador ou um são bernardo) chamado de Procópio Ferreira (F., diz que sim, diz que sim, vai.)
41 - F. detesta neurologia, eu amo neurologia.
42 - Já a compararam a Clarice Lispector.
43 - Acho Clarice uma boa escritora, mas Clarice faz eu me perder. F. tem seu próprio estilo.
44 - Lendo F. eu me descubro, eu me encontro para poder então me perder e me reencontrar.
45 - Sou viciado no que F. escreve.
46 - Sou fã de F.
47 - Ela não gosta de literatura apenas, ela entende.
48 - F. nunca acabou de escrever aquilo que eu comecei.
49 - Ela tem preguiça de escrever as coisas manualmente.
50 - é melhor web designer que eu (olha que estudei pra isso).
51 - a conheci em uma segunda-feira.
52 - a última vez que a vi foi em uma quinta feira.


Quando escrevi o post dos 101, meu amigo Diego (o linkzinho tá aí no nome) protestou: "não vale você escrever sobre você mesma" - e se dispôs a fazer um Top 77 a meu respeito. MAS, como D. é "ligeiramente" hiperativo e não ficaria em hipótese nenhuma sentado numa cadeira pensando em 77 itens para escrever (pensar até pensaria, porque a cabeça dele também trabalha na velocidade da luz; o difícil seria ficar parado fazendo isso), o Top 77 se transformou em um Top 52, que eu roubei lá do blog dele e trouxe pra cá. Os (poucos) grifos em itálico são meus; tudo mais é obra do rapaz.

Esclarecendo: as aulas em questão eram as aulas do nosso curso de criação, lá no Instituto de Artes; Günter era o nosso professor "alemón"; eu REALMENTE detesto passar da condição de médica à de paciente, é um contra-senso, eu sei, mas é a verdade; nosso filho Procópio Ferreira está definitivamente nos meus planos; somos dois hiperativos de gogó hiperfuncionante, deve ser terrível ficar perto da gente quando estamos juntos; é fato, tenho preguiça de escrever - o PC foi a grande invenção do século na minha humilde opinião.

D., te amo (mesmo depois de vc ter dado um bolo em mim e no Drummond no último encontro irrealizável, ok?). Obrigada :)

Beijos a todos e excelente fim de semana!

domingo, 23 de novembro de 2008

Menininhas

Para Flá. Não eu - ela.

Soundtrack: Cyndi Lauper - Girls Just Wanna Have Fun



Não me lembro de como comecei a falar com ela. Mas lembro que achei o máximo aquela menina que era um abuso de legalzice ter o mesmo nome que eu – sem contar o fato de ser igualmente primogênita, e de que suas duas irmãs mais novas tinham os mesmos nomes das minhas. Foram outras as coincidências que nos fizeram parar, no finzinho dos anos oitenta, numa vilazinha bucólica com jeito de casinha de bonecas encravada no meio da Floresta Amazônica – um lugar mágico, capaz de proporcionar aos pequenos uma infância igualmente mágica – junto com tantas outras crianças cujos pais, como os nossos, eram “ciganos de hidrelétricas”, transferidos de tempos em tempos e com as respectivas famílias a tiracolo por esse Brasilzão continental, a serviço do progresso da nação. Fosse qual fosse o presumível elo cármico determinante para o encontro de duas menininhas tão parecidas, embora tão diferentes, ali naquele paraíso perdido, indiscutivelmente a similaridade de histórias e nomes nos aproximou.

Eu, quando nos conhecemos, tinha nove ou dez anos; ela, dez ou onze. Eu tímida, calada, um perfeito caranguejinho canceriano de casca dura e coração mole; ela, um rojãozinho extrovertido e tagarela, do tipo que dava nó no juízo de quem tentava acompanhar aquele pensamento frenético. Eu mais gestual, já nesse tempo falava mais com os olhos que com a boca; ela mais verbal, falando com as mãos e pelos cotovelos. Ela, um ano mais velha, virou quase o meu guru particular e parceira de longos passeios de patins pelas ruas da Vila, duas menininhas on the road. Barbie e bolhinhas de sabão. Piscina, festinha no clube no sábado à noite, São João. Temporada de ingás, a polpa branquinha e doce, branquinha como algodão, doce como aquela vida. Goiabeiras carregadas de goiaba e menino, canelinhas dependuradas exibindo algumas ferroadas e arranhões. Colégio, sonho recheado na hora do recreio, medo da mulher de branco, campainha e a volta para casa cortando caminho pelo hotel ou pelos alojamentos. Não tenho a menor idéia do conteúdo das nossas conversas na época; não me lembro se partilhávamos sonhos malucos ou se, além de papéis de carta, trocávamos também confidências. Também não me lembro se alguma vez fizemos aquela promessa de nunca nos perder uma da outra, não sei, não sei mesmo. O que sei é que o que nos unia devia ser um monte de bobagens, mas bobagens tão sinceramente compartilhadas que, quando ela mudou de cidade – ela tinha doze anos e eu onze – me vi inconsolável. E, entre tantas memórias subliminares, sobressaiu nítida a da despedida, materializada nas letrinhas de criança, dela, desenhadas sobre uma página cor-de-rosa do meu diário, “não se esqueça de mim”. Fiquei, ela foi. Mas, de certa forma, ficou também.

E dá-lhe tempo passando, a gente crescendo, a vida seguindo, eu deixando a vila três anos depois pra morar na capital, aprendendo a me virar na “selva de pedra”, a adolescência se estatelando dentro de mim com seus hormônios e inquietações, inúmeras mudanças de colégio, inúmeros primeiros dias de aula, inúmeros “oi, de onde você veio mesmo?”, espinhas, cólicas, primeiro namorado, segundo, terceiro, cabelos coloridos e descoloridos, rebeldia, TPM, vestibular, faculdade e um monte de eteceteras, incluindo todos os gerúndios e futuros-do-presente capazes de nos fazer deixar bagagem mnemônica para trás por falta de espaço ou por pura negligência mesmo. Eu ainda levando muito a sério aquilo de “não se esqueça de mim”, ela indo e vindo no meu pensamento. Cinco, oito, dez, quinze, dezoito anos passados. E dezenove anos depois, com uma ajudinha providencial dessa geringonça fantástica e sem fronteiras que é a Internet, surpresa: entre tantos e-mails, um “você não é a Flávia assim, assim e assado?” – sim, eu era a Flávia, uma Flávia já balzaquiana e de canelas impecáveis, mas a tal "Flávia assim, assim e assado", de olhos arregalados, respiração suspensa e danada de feliz porque ela, a querida tagarela que não perdia a chance de me azucrinar dizendo que o nome era sua propriedade e que ela apenas fizera a gentileza de me emprestá-lo, havia me encontrado.

E toca a responder o e-mail, e lá vem resposta, e festa, e corre-corre pro MSN... e infinitas histórias pra contar, outras tantas pra lembrar, e gargalhadas, muitas gargalhadas, e saudade, muita saudade, e planos, muitos planos. Minha amiga hoje é jornalista, casada e mãe da Isabela, uma menininha linda. Continua tagarela e com o irritante bordão “como sou mais velha que você o nome é meu, apenas te emprestei” na ponta da língua. Continua rojãozinho, espirituosa e divertida. E o mais importante, continua minha amiga, dessas amizades límpidas e genuínas que se conservam intactas apesar de quase duas décadas de separação. O mundo é realmente muito pequeno quando se está unido a alguém por laços fortes de amizade. E nem é preciso usar botas de sete léguas para chegar até esse alguém; a própria vida, num desses loopings malucos e imprevisíveis, se encarrega de nos reaproximar daqueles que jamais deixamos para trás. O tempo passa, é inevitável, como também são inevitáveis as transformações que o destino e as responsabilidades nos impõem, como são inevitáveis determinadas escolhas e abdicações – mas não se deve abrir mão da própria essência, e uma parte crucial dela vem dessa capacidade intrínseca que nós, seres humanos, temos de amar e de nos permitir ser amados, apesar dos entraves e dos pesares, das distâncias e das discordâncias. É o que nos faz maiores. É o que nos faz, verdadeiramente, melhores.


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Acordes

Tuns e tás, blins e blens.

Soundtrack: Lucas Santana - Mensagem de Amor



Tu, longe, tão longe. E há um violão desafinado aqui, ao meu lado.

Arrisco um acorde, ouço meu coração que bate meio rock, meio bossa, meio qualquer coisa assim sem jeito, meio sem saber o que fazer com as mãos – e minhas mãos transpiram, suam frias, escorregam macias e sem pressa entre tantos tuns e tás e blens e blins, quase toco teu rosto com esses meus dedos úmidos desajeitados. Há um beijo tímido na ponta do meu indicador, leva contigo; é teu, e todos os outros que por descuido ficaram por aqui, nos dedos, nos lábios ou na intenção. Arrisco um acorde, blins e blens, as cordas riscam na minha pele as notas do teu nome; eu me deito sobre esse leito de sons, acorde-me para os teus sonhos. As notas que vibram nesse espaço vêm do meu desejo pelo teu ritmo, abre os braços, sentes? É a minha respiração repousada na tua, suave, feito canção que espera para nascer. Dedos úmidos desajeitados, meus, escorrego macia entre os teus tantos; vem. Tuns e tás, blens e blins, meio-rock-meio-bossa, coração, eu assim meio sem jeito – descompassada, ora aguda ora grave, ora certa ora inversa, blins e blens, ouves? Eu te amo.


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Metáfora do Dia

Nem tudo que reluz é ouro. Ou diamante.


Certo dia um homem, caminhando distraidamente pela rua, pensando na vida, deixou cair do bolso uma moedinha sem valor. Ao se abaixar para recuperá-la percebeu um brilho discreto e inconfundível no chão. O homem se esqueceu da moeda e tomou nas mãos aquela pedrinha reluzente; maravilhado, constatou que se tratava de um pequeno diamante – uma fortuna inestimável apesar do diminuto tamanho. Mal pôde acreditar que algo tão valioso finalmente tivesse ido parar nas suas mãos, e daquela forma tão inusitada; mas agora o diamante era seu, e nada no mundo o tiraria dele. Ainda trêmulo, o homem envolveu seu tesouro em um lenço com muito cuidado e carinho, e o depositou no bolso da camisa. Seguiu para casa feliz, agradecendo pela sorte que finalmente lhe havia sorrido.

Ao chegar em casa o homem trancou todas as portas e janelas, sentou-se na cama, retirou o diamante do bolso e se deteve a examiná-lo demoradamente. Era, de fato, um diamante. Pequeno, um pouco sujo da poeira dos calçados que o haviam pisoteado, mas um legítimo diamante. Talvez por isso ele tivesse sido ignorado pelos transeuntes; aquela ligeira crosta de terra decerto o fizera passar por uma pedrinha comum. Mas ele, o homem, dono de olhos treinados, conhecedor de pedras de todos os tipos, as valiosas e as de brilho falso, o reconhecera. Era, de fato, um diamante. E era seu, embora não soubesse muito bem o que fazer com ele. Decidiu guardá-lo dentro de uma caixinha de jóias, quietinho, seguro, a salvo da cobiça do mundo, até que fosse hora de retirá-lo.

Porém – apaixonado que era por belezas reluzentes – o homem continuou a colecionar pedrinhas. E, quando já não havia espaço para acumular tanta tralha, o homem passou a guardar as bijuterias na mesma caixinha de jóias que servia de refúgio para o diamante; este praticamente desapareceu, afogado sob tanto peso sem valor. O homem, a essa altura, tão ocupado estava em colecionar pedrarias que se esquecera dele. E numa noite de bebedeira abriu a caixinha de jóias, despejou todo seu conteúdo sobre a mesa de jantar e perdeu-se em admiração por todas aquelas cores e formas que saltavam diante de seus olhos... por fim, num surto de insanidade, apanhou o pequeno diamante – entre todas as pedras, a menor e mais desprovida de cor – e a atirou raivoso dentro do vaso sanitário. E puxou a descarga (!!!).

No dia seguinte, em meio à ressaca, o homem se lembrou do diamante e do que fizera. Desorientado, torcendo para que os acontecimentos da noite passada não tivessem sido mais que um terrível pesadelo, abriu a caixinha de jóias: vazia. Revirou a casa inteira: nada. Buscou em todos os lugares, vagou pelas ruas à procura de sua pedrinha... mas ela realmente se fora. E ele nunca mais tornou a vê-la, nem encontrou outro diamante – afinal de contas, diamantes não nascem em árvores, não é mesmo?


Moral da história: há pedrinhas chinfrim, há semijóias e há (pouquíssimos, raríssimos, exclusivíssimos) diamantes. Misturar as três categorias no mesmo balaio é abusar da sorte.


Beijos a todos e ótimo início de semana!

________________

P.S.: estarei um pouco ausente entre os dias 12 e 16 desse novembro devido a uma sequência de provas de residência espalhadas por aí. Na segunda-feira, 17/11, tô de volta. Torçam aí! :)


domingo, 9 de novembro de 2008

Desculpe, Foi Engano

O que é a vida para você?

Soundtrack: The Twilight Singers - Powder Burns




- Alô.
- Oi. Quem fala?
- Quer falar com quem?
- Quem é?
- Olha, você me ligou. Quer falar com quem?
- Com você.
- E quem é você?
- Não vale a pena dizer. Só queria falar com alguém. Com você.
- Ok, já falou. Até mais.
- Não desl...

O telefone voltou a tocar, olhei: novamente, número não identificado. Não atendi. Precisava terminar de escrever aquele romance, protelado há semanas – meio por bloqueio criativo, meio por uma vergonhosa e irresistível preguiça. A chuva forte despencando do lado de fora era um convite tentador ao ócio; o telefone, se esgoelando sem parar, ajudava a tirar o pouco de concentração que me restava. Depois da enésima ligação atendi, contrariadíssima, e não disse nada. Esperei. Ele falava em voz baixa e, dessa vez, parecia meio constrangido pela insistência.

- Desculpa. Você não me conhece, eu não te conheço. Disquei ao acaso, você atendeu. Preciso falar com você, por favor, não desliga. Vou me matar daqui a pouco e preciso conversar com alguém.

Ótimo. Um lunático na minha linha no meio da madrugada. Na melhor das hipóteses, um desocupado. Passada a surpresa do primeiro instante e cumprido o inevitável caminho susto-perplexidade-indignação-só-me-faltava-essa, respondi com meu habitual respeito pelas duas condições:

- Você bebeu?
- Pareço bêbado?
- Ok. Você cheirou? Sem ofensas.

Ele riu.

- Você é sempre assim?
- Assim?
- Assim, meio sarcástica. Sem ofensas.
- Ah, não, não. Só quando desconhecidos com idéias suicidas me telefonam no meio da noite. Sabe como é, instinto.
- Você parece ser legal.
- Você fala demais para quem vai se matar.
- Quantos suicidas conhece? Quero dizer, conheceu?
- Nenhum.
- Como pode saber se falam muito ou se falam pouco?
- Como posso saber se vai mesmo se matar ou se é um esquizofrênico a fim de “suicidar” o próprio tédio e a minha noite também?

Silêncio. Do lado de fora, só chuva. Silêncio e chuva, ambos caudalosos. Quase desliguei, ele tornou a falar.

- O que é a vida para você?
- O que é a morte para você?
- Perguntei primeiro.
- Tanta coisa. Nascer, crescer, reproduzir, passando por todos os intermediários, talvez.
- Dá pra ser mais clara?
- Comer, beber, beijar, brigar, ter dor de barriga, arrumar um emprego, pagar contas. Cair da goiabeira e ficar com uma cicatriz no joelho, sexo por amor, sexo sem amor, fazer dieta, sabotar a dieta, tomar uma cerveja gelada num dia quente, tanta coisa, tanto faz, eu não sei. Não interessa o que é a vida para mim. Interessa o que é a vida para você. É VOCÊ quem quer se matar.
- Não quero. Vou.
- Ok, é você quem VAI se matar.
- Isso.

Silêncio. Para mim ainda parecia um trote mas, de repente, começou a me incomodar MESMO a possibilidade de que aquele sujeito fosse realmente se suicidar. Não sei se o incômodo era saldo da proximidade da vida ou da morte dele; o fato é que de repente aquilo tudo ficou muito desconfortável, principalmente porque eu não fazia idéia de quem era o fulano que me escolhera como ouvinte das suas – até prova em contrário – últimas palavras. Ele parecia tão próximo. Talvez estivesse esperando que eu dissesse “não faça isso” ou coisa parecida, ou algum tipo de discurso sobre como a vida é bela e a morte é negra, mas o insólito da situação tirara de órbita minha capacidade de raciocínio lógico. Ainda assim, foi minha vez de quebrar o gelo.

- E afinal, vai se matar por quê?
- Pensei que não fosse perguntar.
- Não ia. Perguntei porque acabou o assunto.
- E por que não desligou?
- Prefere que desligue?
- Você é estranha.
- Você ainda não viu nada.
- Não vejo sentido em continuar vivendo.
- Hã?
- Não vejo sentido em continuar vivendo.
- Isso é clichê. Não acredito que vai se matar por um clichê.
- A vida é um clichê.
- Não acredito que vai se matar por um clichê.
- No que você acredita?
- Agora? Acredito que você deve estar doidão.
- Não me mataria se estivesse doidão. Poderia me arrepender depois.
- É, poderia.
- Sua voz é bonita. Você deve ser bonita. Já pensou em se matar?
- A bola da vez é a sua morte, não a minha.
- Pensou, não pensou?
- Sei lá, todo mundo pensa nisso uma vez na vida.
- Por que não se matou?
- Porque não queria morrer de verdade. E acho que você também não quer. Quem quer morrer não fica de conversa fiada ao telefone.
- Uma contradição.
- Quê?
- A vida. É uma contradição. A gente nunca sabe mesmo quando está vivo e quando já está morto.
- Não prefere falar de amenidades? Sei lá, filmes. Batman. Você viu Batman?
- Não gosta de falar disso, não é?
- Estou tentando te distrair. Sei lá, pra você ter uma pré-morte mais legal. Aliás, como pretende, desculpe, como vai se matar?
- Você vai saber. Leia os jornais amanhã.
- Por que me ligou, afinal?
- Precisava falar com alguém. Fico feliz que tenha sido você. Se não fosse me matar, te convidaria para um cinema. Ou para uma cerveja. Enfim, fica para a próxima. Vou nessa, se cuide. Obrigado pela conversa.

Ele desligou. Só ele: eu fiquei subitamente atônita, com o telefone na mão. Não podia retornar a ligação, não podia nada a não ser esperar. Esperar. Esperar. Esperar. A madrugada passou lenta, se arrastando, eu rolando na cama, com o telefone na mão. Sempre com o telefone na mão. No dia seguinte devorei os noticiários e jornais em busca de algum sinal: nada. Uma semana mais tarde encontraram o corpo de um homem boiando no rio, sem marcas de violência ou qualquer outro indicativo de homicídio – segundo as informações, provavelmente o homem se suicidada. Não me contive: chorei. Depois disso a vida quase voltou ao normal. Quase, pois eu não conseguia esquecer o telefonema nem me convencer de que, mesmo que quisesse, eu não poderia ter impedido – cada pessoa segue seu próprio destino: o meu era atender a um telefonema, o dele terminara naquele leito de rio. “Você parece legal”, eu me sentia péssima, de qualquer jeito.

Voltei a trabalhar no romance e tentei esquecer o episódio, embora volta e meia ele me voltasse à memória. E, numa noite em que as nuvens anunciavam uma chuva tão torrencial quanto à da noite em que ele telefonara, ouvi o toque insistente da campainha. “Algum chato”, pensei, enquanto me encaminhava para a porta e espiava através do olho mágico. Não havia ninguém. Entreabri a porta com cuidado e olhei através da pequena fresta: nada, a não ser um pequeno envelope pardo depositado sobre o batente da porta. Apanhei-o e me tranquei em casa novamente e, ainda de pé junto à entrada, rasguei uma das bordas, verifiquei o conteúdo e senti o coração bater de alívio e de felicidade – como tinha me encontrado? Não importava: eram duas entradas para o cinema, a última sessão daquela noite. E um bilhete: “desculpe, foi engano.”


sexta-feira, 7 de novembro de 2008

2/3 de História e Algumas Moedas



Esboço um poema de amor num guardanapo de papel sujo de batom, o meu – e minha boca, pouco a pouco, se purifica e volta a caber em mim, apesar destes olhos que não cabem mais e deste coração que nunca coube; é ele quem invariavelmente me leva pela mão, e o admiro tanto que não o desobedeço e nem o aborreço com perguntas. Ininteligíveis, a letra e eu. Ambos rascunhos, talvez. Na verdade não me entendo muito mas, se me entendesse, de fato não seria eu – se não me entendo é porque a cada dia abraço a opção de me transformar. Só quem é muito raso se compreende a fundo e consegue essa coisa a mim improvável que é se definir; prefiro não me negar o direito de me surpreender comigo mesma.

Ininteligíveis, eu a letra que se vai parindo trêmula sobre o papel meio branco, meio cor-de-poema-que-quer-nascer; deve ser a iminência de dar à luz esses versos que me estremece os dedos. Trêmula, esboço um poema de amor. Cinco linhas mal escritas: o que um dia eu disse se perdeu num tempo feito de alheamentos, o que eu não disse criou raiz e se dispersa entre os traços de tinta. E que coisa familiar, 1/3 da minha história cabe nessas cinco linhas – os outros 2/3 rodopiam incontinentes pela sala, de cabelos soltos, cunhando sóis nas moedas largadas sob a mesa. E nem me importo se essa improvisada dança de minhas histórias me arrebata o papel e a sobriedade: os versos ficam-me entre os dedos de uma mão, o amor entre os dedos da outra e breve estão os dois, amor e poesia, um para um, no mesmo copo. Bebo de uma só vez, sem tempo de respirar ou de voltar atrás.

E a sombra silenciosa que desliza aveludada pela parede se confunde com o cheiro do poema que não escrevi, mas que ainda assim perpetua versos dentro de mim.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Exercício Para Parar de Pensar

Das lembranças não havidas escorre um resto
de mim;
quase nulo, e pequeno.
Mas, astuto, se agiganta
e vira Eu completo e sem memória,
incoercível e largo Eu.
Escolho-me.


Soundtrack: Black Crows - Sometimes Salvation




Enquanto a memória das inexistências mina pelas torneiras abertas, desligo o telefone e o pensamento para que ninguém chame meu nome em vão – mas é impossível, ao menos hoje, arrancar de mim esse nome amargo pendurado nos lábios, e esses sons hostis cravados na minha língua. Então engulo as letras, e os cacos pontiagudos das palavras trituradas vão ferindo a garganta e regurgitando impacientes, e sempre me enchem a boca e o peito. Falar nunca é fácil. Enquanto o dia borra de tic-tac-tic-tac-tic-tac essa irritação zombeteira repousada sobre meu ventre e os segundos pulsam esparramados sobre o piso frio, quase esqueço. Quase, pois da minha vida inteira eu não me recordo mais e do que não vivi, eu me lembro. Eu me lembro, e como pode essa lembrança se impor assim tão nítida, teimosa e nítida, indesejada e nítida, esvaecendo com um único “click” minha resolução de não lembrar? Aqui estou “sssst, silêncio, beije a minha nuca, Esquecimento, eu te assusto?” – e o pensamento avança nesse desarranjo dual, sssst, click, cheio de vontade própria, eu acreditando e desacreditando nele – sou falha, eis a minha perfeição. Calar nunca é fácil: eu derramo o não-dito coração adentro, um dia me aquieto. Enquanto isso, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, perfilados, um a um, entre mim e a outra margem do som.


terça-feira, 4 de novembro de 2008

Enigma do Dia

Alguém já reparou que quando a gente propõe a verdade para determinados "uns" é como se para eles, muitas vezes, soasse algo do tipo "tire toda a sua roupa, fique completamente nu e passe horas a fio de pé e com os braços levantados sobre um pedestal do outro lado da rua"?

A verdade, para "uns", só não é mais assustadora que a morte. Ou é.


E não, isso não tem endereço certo. É só uma constatação, inaugurando a semana de (des)necessárias constatações.


domingo, 2 de novembro de 2008

Os Últimos Serão os Primeiros

Pois é, o primeiro post do mês é esse meme que me foi repassado pela Nêga. As regrinhas são: Passar para 5 pessoas; assim que responder me envie um comentário avisando; não esquecer que é um meme feito pelo Assuntos Assim.


1) A última pessoa com quem falou hoje: minha irmã Fernanda.

2) A última coisa que falou: Feeeeer, qual foi mesmo a última coisa que eu te falei???

3) O último pensamento: qual foi mesmo a última coisa que eu falei?

4) A última pessoa com que se reconciliou: G.

5) A última pessoa com quem brigou: G.

6) A última pessoa que falou de Deus pra você: minha mãe.

7) O último lugar em que você gostaria de estar: sete palmos abaixo da terra.

8) O último filme a que assistiu: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore (não, não é ele o G.). Sou a pessoa que mais assistiu a esse filme no mundo.

9) O último livro que leu ou que está lendo: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Autobiografia romanceada do lendário imperador romano, redigida em forma de cartas ao futuro imperador Marco Aurélio. Não é a primeira vez que o leio, e certamente não será a última: é um livro simplesmente apaixonante. LEIAM.

10) O último presente que ganhou: um porta CDs.

11) A última coisa que gostaria de estar fazendo: brigando. DE-TES-TO.

12) O último telefonema feito ou atendido no seu celular ou telefone: ex-marido.

13) O último conselho que deu e pra quem deu: para mim, tome uma atitude de uma vez por todas. Claro que eu não segui.

14) A última vez que chorou e por que: sábado. Porque assisti a Cinema Paradiso, porque reli a 4ª parte do livro, porque me deu saudade de um monte de gente que eu nunca mais vi e de outras que eu nunca vi e nem sei se vou ver, por pensar demais e agir de menos e porque eu estava mesmo exageradamente sensível (ou seja, eu chorei MUITO). E NÃO, NÃO ERA TPM.

15) O que faria hoje se fosse seu último dia de vida: um testamento declarando que aquele que tiver a péssima idéia de me fazer um velório será amaldiçoado para todo o sempre.


O meme eu repasso pra quem quiser fazer.

E muito obrigada à Nêga pelo Oscar, ao Paulo R. Diesel pelo selo Eu Recomendo Este Blog e ao Matthew pelo selo Este é um Blog Inteligente. Repasso a todos da vizinhança :)

Beijões!