sexta-feira, 7 de novembro de 2008

2/3 de História e Algumas Moedas



Esboço um poema de amor num guardanapo de papel sujo de batom, o meu – e minha boca, pouco a pouco, se purifica e volta a caber em mim, apesar destes olhos que não cabem mais e deste coração que nunca coube; é ele quem invariavelmente me leva pela mão, e o admiro tanto que não o desobedeço e nem o aborreço com perguntas. Ininteligíveis, a letra e eu. Ambos rascunhos, talvez. Na verdade não me entendo muito mas, se me entendesse, de fato não seria eu – se não me entendo é porque a cada dia abraço a opção de me transformar. Só quem é muito raso se compreende a fundo e consegue essa coisa a mim improvável que é se definir; prefiro não me negar o direito de me surpreender comigo mesma.

Ininteligíveis, eu a letra que se vai parindo trêmula sobre o papel meio branco, meio cor-de-poema-que-quer-nascer; deve ser a iminência de dar à luz esses versos que me estremece os dedos. Trêmula, esboço um poema de amor. Cinco linhas mal escritas: o que um dia eu disse se perdeu num tempo feito de alheamentos, o que eu não disse criou raiz e se dispersa entre os traços de tinta. E que coisa familiar, 1/3 da minha história cabe nessas cinco linhas – os outros 2/3 rodopiam incontinentes pela sala, de cabelos soltos, cunhando sóis nas moedas largadas sob a mesa. E nem me importo se essa improvisada dança de minhas histórias me arrebata o papel e a sobriedade: os versos ficam-me entre os dedos de uma mão, o amor entre os dedos da outra e breve estão os dois, amor e poesia, um para um, no mesmo copo. Bebo de uma só vez, sem tempo de respirar ou de voltar atrás.

E a sombra silenciosa que desliza aveludada pela parede se confunde com o cheiro do poema que não escrevi, mas que ainda assim perpetua versos dentro de mim.


32 comentários:

Nem Li disse...

O-TE-MO!

Amei, juro.

Alexandre Lucio Fernandes disse...

Nossa, que coisa linda de se ler. De um poema que não saiu mas ficou ali inspirado na fragrância do ar. Há beleza até no que ainda não se materializou.
;)

Que lindo Flá.
Terno e amável texto.
Grande Beijo

Anna Bueno disse...

Flavinha,
O poema não escrito e vivido é o mais lindo de todos. Vc está de parabéns pela forma que escreve. Ao ler seus textos me fica a impressão de que seus escritos têm vida própria...coisa muito linda.
Beijos!

Van disse...

Menina, a produção não pára!!!! Que delícia!!!! Lindo, como sempre.
Por que será que sempre que eu venho aqui eu me sinto esse imenso PLEONASMO??????
Um eco repetindo sempre as mesmas coisas. É sempre tudo perfeito.
beijucas, moreca

Sueli Maia (Mai) disse...

Flá, ppariu.........
"...a letra e eu. Ambos rascunhos..."
Que rascunho!
De certezas e supostos saberes, os consultórios esgotam agendas.
Surpreenda-se e, por favor, surpreenda-nos, sempre.
Carinho.

Anônimo disse...

Perpetuam, no papel ou antes dele. Porque você, Flá, é inteira verso.

=)
Meu beijo e todo, de sempre.

C. disse...

tu já sabe né, o que eu vou dizer? então pronto. eu diria em versos, mas tô tão cansada pra dizer coisas bonitas...

=**
linda.

Nadezhda disse...

Vi um pouco de mim nas suas palavras ;)

Bandys disse...

...amor e poesia entre os dedos...
Bebo de uma só vez...

Que seus versos venham sempre escritos de uma vez só!
Maravilha, lindo.
beijos

ps:tenho bola de cristal não, mas sei o que é isso, kkkkk ☺

Anônimo disse...

A senhorita é inteiramente verso de prosa e poema. A senhorita perpetua os sentimentos em versos de prosa e poema. A senhorita, ah senhorita ..

Abraço, até breve,

R.Vinicius

Anônimo disse...

É nesse gingar, entre tentar colocar em papel o que sentimos e o sentir intensamente, que nos fazemos, corpo e alma, de nós mesmos... para um outro sem face. Porque amamos o amor e toda fúria e paixão que com ele vem junto.

Delícia, Flávia!

beijinhos, menina.

Fátima disse...

o melhor mesmo, quando chegas essas é horas é deixar partir.

***

a vida é composta por poemas intermináveis, que são tão dolorosos de se escrever que simplesmente não suportamos.

beijos.

Sempre querendo saber disse...

So elogios!
Lindo como sempre!

"E a sombra silenciosa que deslixa aveludada pela parede se confunde com o cheiro do poema que não escrevi,mais que ainda assim perpetua versos dentro de mim"

insens disse...

Elegante, poético, lirico, enfim tudo que um bom texto deve ter.. Em verdade seus poemas nunca são incompletos, apenas se dizem de outra forma. No seu caso, ainda que mutante e indefinida, não fica distancia entre intenção e gesto. Vale a pena te ler.

Ruberto Palazo disse...

Muitos versos nao foram escritos, ou escrevemos e deixamos o vento levar... mas os que mais doem são esses que engolimos e deixamos vivos dentro de nós, arranhando nosso interior em cada picada, cada movimento, cada linha destorcida...

Beijos hermana!!

D.J. Dicks disse...

qual intenso
e cansantivo
e machucado
e apaixonada palavras

.a nega do neguinho. disse...

Como sempre arrasando nas palavras né Fla?


Fazendo nós mesmas entrarmos profundo no nosso misterioso EU!

Germano Viana Xavier disse...

O Alfredo Bosi iria chamar isso de "literatura perdida". Não que seja perdida, mas sim a verdadeira honra de um escritor que estaria em pleno vapor no romantismo.

E desejo é sempre um desejo.
Perturba e muito.

Um carinho, Flávia.
Continuemos...

Monday disse...

eu diria que se continuar desse jeito, vai ganhar um presentão de Natal no final do ano ... rsss

e para quem passou 1/3 a se envolver em poesia, os outros 2/3 vão ser um caminho aveludado em belos versos ...

e para o terceiro conjunto de cinco dedos, quem sabe o futuro não te reserva até dez, a lhe fazerem par?

Altavolt disse...

Flavinha,
A inspiração já começa no papel em que vc escreve: Um guardanapo sujo de batom. Só essa idéia já nos remete a inúmeras possibilidades de encontros e desencontros de uma jovem mulher. Coração que não cabe em si e olhos que parecem buscar no exterior a mesma verdade que há em seu interior tão rico. Abençoados os que têm o privilégio de a terem por perto para colocar os pingos em todos os "is"! Grande beijo!

Felipe Lima disse...

Você falou de você e falou de mim também, Flávia. Acho que não conseguiria pintar um retrato como esse.
Um abraço.

Felipe Lima disse...

Você falou de você e falou de mim também, Flávia. Acho que não conseguiria pintar um retrato como esse.
Um abraço.

Felipe Lima disse...

A empolgação foi tamanha que me repeti. Pensando bem, me repito sempre.

O Velho disse...

"Só quem é muito raso se compreende a fundo"

De onde você veio, moça? Que texto ótimo! Sensibilidade, clareza e fluidez!

Voltarei mais vezes, com certeza.

Beijo.

;-)

Biα e Kαh disse...

Como eu adoro seus textos!
É o que sinto na maioria das vezes e fica tudo dentro de mim. Só consegue entrar no papel algumas palavras inúteis.
=)

Anônimo disse...

Como sempre, um texto muito gostoso de se ler. E que mostra intensidade e sensibilidade.
Muito bom, Flavinha.
Beijão, moça! ^^

Paula Calixto disse...

Sabe de uma coisa?

Você é uma RENASCEntista!!!

(;

Verdadeira... Inteira!

Beijos, flor.

Anônimo disse...

Ir fundo ou ser profundo.
É isso que percebo nas palavras distribuídas no texto que me enolve. Não num guardanapo de papel sujo, mas num sentimento que enaltece as qualidades de um poeta que disserta sobre qualquer assunto.

É o que eu penso.

Grã disse...

Chego e
encontro na mesa
ainda desarrumada,
entre copos
com restos de uma bebida azulada
que me deixou curioso...
pelo tom de azul...
pelo cheiro doce...
até a posição dos copos.
Mas ainda assim,
não a teria experimentado
se não fosse pelo que
encontrei na mesa
ainda desarrumada...
entre os copos:
uma boca!
Num guardanapo com frases tortas...
Confesso não as ter lido,
só via a boca:
Bebe!
Molhei o dedo e experimentei,
me imaginei molhando o dedo naquela boca
e experimentando...
Repeti o ato mais duas vezes
para depois beber num impulso...
Conhecia bem aquele gosto,
e seu cheiro...
que encontrei na mesa
ainda desarrumada,
entre os copos...
gosto de poesia...
seu cheiro...
me persegue desde então...
Na mesa
A mesa ainda
desarrumada
Os copos, corpos desarrumados...
Tinha a mesa
tinha os copos e o cheiro...
respirei fundo...
cheiro de amor!
Achei melhor mudar de mesa,
mas sabia: Era tarde demais!!!

Grã disse...

Boca Bar II

Jana Lauxen disse...

Caio no lugar-comum mais uma vez, e repito aqui: texto fantástico. De uma beleza e sutileza quase sólidas.

Ler você é uma delícia!
A gente nem vê o tempo passar.

Beijocas
:)

Anônimo disse...

Você escreve tão bem.
Agora posso ver o "não me entendo" como algo bom, assim como você mesma disse, quero me surpreender comigo mesma. Isso acontece com frequência e agora falo que é ainda bem!
Bjitos!