O que me lembro é de ver muita, muita água. E de ver aquela água toda subindo muito,
muito rápido.
Eu estava de pé em frente à máquina de lavar roupas e, de
repente, um cano estourou. Nem sei bem se foi um cano mesmo, não vi nada nem
ouvi ruído nenhum; na verdade não me recordo bem do que realmente aconteceu na
hora, só de subitamente sentir os pés molhados para, logo depois, entrar em
pânico ao perceber que a água já estava pelos joelhos e, sem que eu tivesse
tempo de piscar os olhos, pouco acima da minha cintura. Sei que não havia
paredes porque, de onde estava, enxergava com nitidez a laranjeira e a casinha
do cachorro – mas, espantosamente, a coluna de água se elevava à minha volta
autônoma e faminta, senhora de si, como se eu fosse não mais que uma insignificância
a ocupar seu território. Foi um sonho – mas, ao acordar, eu podia sentir meu
corpo úmido e o pavor a me fazer respirar fundo, pelo nariz e pela boca e com a
boca muito aberta, pronta para trocar qualquer pedido de socorro por todo o ar
capaz de manter viva. É um sonho recorrente este, como se a ira divina, volta e
meia, me observasse pelo buraco da fechadura. Os detalhes diferem grandemente
entre si; o cerne, porém, é sempre o mesmo – água que surge de repente,
imprevisível, e vai subindo, subindo, engolindo tudo enquanto eu, impotente e
assustada, vejo minha existência inteira diluída, escorrendo pelos meus dedos
em gotas miúdas.
Sempre tive medo de água. Nos pesadelos de infância o
bicho-papão era sempre um rio, um mar, uma lagoa, até mesmo uma banheira. Água,
só no chuveiro ou na geladeira. Um medo incoerente, reconheço. Nascemos da
água: passamos 280 dias mergulhados em líquido amniótico no calor do útero
materno. Nós, seres humanos, somos, em média, 70% água. Dizem os evolucionistas
que foi na água que a vida começou – num caldo quente e multivitaminado onde o
que não virou sopa se transformou em tudo o que nasce, cresce, reproduz e morre
sobre a Terra, e há quem diga que é debaixo d’água que o mundo se acabará. A
onipresença da água é inconteste mesmo quando não nos damos conta disso.
Quando, por exemplo, nos resignamos diante das dificuldades pensando: depois da
tempestade vem a bonança, água mole em pedra dura tanto bate até que fura (ou
não, pois dar com os burros n’água é sempre uma possibilidade). E que expressão
define melhor a deliciosa sensação de leveza e bem estar que sobrevém após a
tempestade do que “alma lavada”? Chamamos “líquidas” às coisas perfeitamente
determinadas e “liquidado” àquilo que já chegou ao seu fim. As emoções humanas,
quando em sua máxima potência, são expressas por água – damos vazão a elas
através de lágrimas, desarranjos intestinais ou até xixi nas calças. Água,
água, água. Potável, boricada, de melissa, tônica, com gás, sem gás, aquela que
passarinho não bebe. Assumo com a cara mais lavada que tenho medo de água e, se
você não tem, lavo minhas mãos. Somos água e óleo, fazer o quê.
Digo, porém: apesar do medo, admiro a água. Admiro sua
força, sua fluidez e capacidade transformadora. A água, como raros agentes
nesse mundo, percorre o quer que seja em toda a sua intimidade. Respeito a água
porque a água – como a vida – não
respeita o caos. Diante do caos, ou até mesmo por causa dele, a vida resiste
sem remorso. E a água, aos poucos, após o caos, a sujeira e o pânico, vai
recolocando cada coisa em seu devido lugar.
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imagem: Google |