sábado, 5 de setembro de 2009

Entre Tantas, Uma História

Do que existe, e do que não se vê.

Soundtrack: Suzanne Vega - Luka


Ao me ouvir chamá-lo, o menino de sete anos abriu a porta do consultório feito uma ventania e se atirou no meu pescoço, “oi, tia”. Estava mais corado e bem mais desenvolto que na ultima consulta. Contou-me animado a respeito da escola nova; mostrou com orgulho a ponta de um dentinho permanente rasgando a gengiva, diminuindo o perímetro da janelinha sobre a qual eu brincara quando nos conhecemos. Foi essa a quarta vez que vi A.; na terceira eu lhe havia solicitado uns exames de rotina e, na segunda, ele comparecera para realizar uma lavagem de ouvido.

O tio de A. o levara até mim porque o menino, além de queixar-se de dor nos ouvidos, parecia ter um certo grau de hipoacusia – era preciso que o chamassem várias vezes até que ele atendesse aos comandos e, na casa dos avós, onde ele passara a morar desde que a mãe perdera sua guarda, os familiares, atentos, perceberam que o que parecia teimosia ou distração poderia, ao invés de algo puramente comportamental, ter uma causa orgânica. A palidez de A. me impressionou tanto quanto seu silêncio; segundo o tio, ele sempre fora uma criança quieta, mas, para mim, acostumada que sou com crianças de todas as idades e classes sociais, aquela inatividade toda era mais do que uma questão de temperamento – certamente havia por trás algo que ia muito além da dor física ou da contenção de travessuras infantis. A. não me olhava nos olhos, e respondia minhas perguntas com gestos e acenos de cabeça. O exame físico me deixou assustada: alguns hematomas e cicatrizes pelo corpo, e uma quantidade de cerúmen nos condutos auditivos que eu jamais havia visto sequer em ouvidos de adultos. Fiz a prescrição do medicamento a ser usado durante a semana, marquei a lavagem para dali a cinco dias e fui pra casa com aquilo no pensamento.

O que encontrei durante o procedimento nos ouvidos de A. me deixou chocada. Era realmente uma quantidade inimaginável de cerúmen, mas não apenas isso: ele tinha pequenos fragmentos de plástico e papel em ambos os condutos auditivos. Para quem não sabe, a lavagem otológica é realizada com soro fisiológico aquecido – ou seja, a temperatura do líquido deve ser rigorosamente monitorada a fim de retirar o cerúmen sem provocar queimaduras; é praticamente impossível um paciente não esboçar reações caso ela esteja ao menos ligeiramente acima do tolerável, lembrando que o epitélio do ouvido interno é extremamente sensível a variações térmicas. Apesar disso, A. não mexeu sequer um músculo da face. Cheguei a pensar que a indiferença dele se devesse a algum provável problema neurológico, o que justificaria o comportamento quase glacial mas, ao ser indagado se o líquido estava quente demais, ele respondeu “sim”.

- E porque você não disse nada?

Ele baixou a cabeça e pareceu receoso de responder alguma coisa. Por fim, balbuciou “eu posso?”, e isso me desnorteou. Pedi ao tio de A. que me dissesse afinal o que era que estava acontecendo ou eu teria de chamar o Conselho Tutelar; o rapaz, então, contou que o menino fora retirado do convívio com a família por ser vítima de abusos constantes por parte do padrasto e que, muitas vezes, era espancado apenas por ter feito alguma pergunta ou mínima queixa. Nas últimas semanas, A. levava surras constantes porque não atendia aos chamados, o que era classificado como rebeldia e desobediência pelo agressor – e isso causara no menino um pavor que ele transferia inconscientemente aos outros adultos de seu convívio: A. não se queixava para não ser agredido, mesmo que se encontrasse no limite da dor física ou psicológica. As feridas emocionais de A. eram tão profundas que anestesiavam sua capacidade de expressar reações comuns às outras crianças.

Há 5 meses A. é meu paciente. Hoje, o garoto é uma criança diametralmente oposta à de antes: brinca, tagarela e o mais importante, se sente seguro e amado por aqueles que assumiram a responsabilidade de cuidá-lo. O final feliz da história de A., no entanto, é exceção – a regra continua a ser a existência dolorosa e anônima de um número incontável de crianças vítimas de toda sorte de abusos físicos e psicoafetivos. Tão frágil quanto essas pequenas vítimas é a efetividade com que é combatida a violência infantil no país; apesar de patente, as estatísticas relacionadas ao assunto estão muito aquém do real. A distorção no registro desses números está diretamente relacionada ao velho conceito, ainda em voga, de que é melhor fechar os olhos para o que acontece na casa do vizinho e fazer de conta que F. realmente quebrou o braço porque tropeçou no carrinho e caiu da escada, ou que os hematomas nos braços e pernas de N. surgiram de um tombo de bicicleta, ou que foi o próprio A. quem picou os pedaços de plástico e os inseriu dentro dos ouvidos. É mais fácil, é mais confortável acreditar que o que não se vê, não existe. Só que violência infantil existe, e não é prerrogativa apenas de quem a executa com as próprias mãos: é de quem silencia diante dela também.


25 comentários:

bete disse...

amiga, vc é um anjo que surgiu na minah vida e de várias outras pessoas. te admiro muito. bj

Unknown disse...

E o pior é que esse tipo de coisa acontece! e muitas vezes ninguém faz nada.
Minha mãe é doretora de uma ESCOLA PUBLICA de educação infatil e ensino fundamental I. e o que acontece não é muito diferente, crianças machucadas, sempre aparecem...
Tem ocasiões em que as crianças so frequentam a escola por terem direito a merenda, tem mães que vão até lá para pegar as sobras dessas merendas para dar o que comer aos outros 5 filhos. Isso infelizmente é uma realidade Brasileira, e parece que pouco ou nada esta sendo feito a respeito!

adorei, seu texto.
Espero A. fique melhor, especialmente pscicologicamente!

Dulce Miller disse...

Oi moça!
Eu tive oportunidade de fazer um trabalho voluntário em uma das "casas de acolhida" aqui de Porto Alegre, onde ficam crianças vítimas de abandono, abuso sexual ou maus tratos em geral. Ao ler teu texto veio toda a emoção daquela época, toda a dor que eu sentia diante da minha impotência e indignação.

Um ótimo texto, parabéns!

Beijos

Anônimo disse...

sim Flávia... quem silencia é cumplice tb.
gosto de vir aqui!

um bjo.

Van disse...

É, Flá(wer)...
O silêncio dos bons talvez seja mais podre do que o grito dos maus!!!
Lamentável o que certas pessoas são capazes de fazer...

Amor devia vir dentro da gente, de fábrica, sem direito a devolução.

Beijuca

Anna Bueno disse...

Flavinha,
Isso é tão comum, né? E nao importa a classe social ou raça, há sempre crianças sendo subjugadas. Criança ainda é algo que me toca profundamente.
Continue seu lindo trabalho e seja cada dia mais além de uma médica escrivinhadora, uma pessoa sensível e atenta.
Bjos!!!

F. Reoli disse...

Bem bonito o que escreveu. Onde assino?
Beijo amiga blogueira e twitteira

Anônimo disse...

Flor, realmente o que não se vê ainda é levado como não existente por acomodação.
E quem paga??

Beijos

Kari disse...

Acho que o silêncio é ainda pior. É você poder fazer algo e optar por não fazê-lo.

Beijos

Maria Rita, Brasil. disse...

A mais pura verdade. O silêncio dos outros é o maior apoio pros agressores, e causa danos ainda maiores que a própria violência.

Mônica disse...

Essa realidade é muito triste e mais comum do que se imagina. Graças a Deus essa criança foi salva e está conseguindo superar os traumas.
Bjs

Mauri Boffil disse...

Ai, e na nossa região tem aumentado bastante... preocupado

Carolina disse...

Essa história me deixou triste... muito. Porque é real e acontece sempre. Trabalhei com um psiquiatra e uma neurologista infantil por quase 2 anos e muitas crianças mostravam sinais de abuso, mais psicológicos do que físicos... e era triste eu não poder fazer muita coisa por eles. Rezava para meus chefes resolverem o problema deles, e muitas vezes conseguiam.

E quanto ao seu post anterior: eu já tive um espinho de peixe agarrado na garganta, mas ele ficou lá por alguns dias... e eu só descobri que era isso depois que meu tio, que era dentista, resolveu meu problema e tirou o espinho de lá com uma pinça. Fiquei anos e anos sem nem poder olhar pra peixe. Aliás, qdo como peixe hoje em dia ainda me lembro daquela sensação horrível...
me empolguei (:
Um beijo

Rafhitch disse...

Uma história realmente comovente Flá!

Espero que o A. esteja agora levando uma vida digna para uma criança.

Beijos e saudades de você!

Altavolt disse...

Muito pertinente este post, Flavinha. Acima de tudo, é a prestação de um belo serviço social ao nosso país! Parabéns! Beijo!

Altavolt disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
.Intense. disse...

Conforme fui lendo o texto, os olhos foram enxendo d'água, Fla. Textos assim merecem mto ser lido, divulgados ao máximo, pra que todo mundo [se não tem] crie consciência de não deixar, denunciar...e, principalmente, não cometer.

E, que assim como A., que milhares de crianças possam ser salvas dessa tortura pela iniciativa de amor de alguém. Parabéns pelo post.

;)

Unknown disse...

Eu leio essas coisas e não sei se quero morrer consumida na raiva que se apossa de mim, ou se quero direcioná-la ao dito cujo que produziu essa barbárie e matá-lo com requintes de dor e crueldade. Juro que não sei.
Parabéns pelo texto.

phiwod disse...

É avassalador pensar que coisas assim realmente acontecem todos os dias em qualquer lugar do mundo, mas prefiro ver a parte boa deste post: Ainda há seres humanos nos consultórios, se preocupando verdadeiramente ao invés de só riscar da lista o registro nº xxx. Sensacional.

Anne disse...

Pois é, Flavinha... o pior é q casos como esse acontecem muito mais do q a gente pensa. Trabalhando naquela escola eu vejo mto isso, nao sei explicar, parece q mtas das pessoas que moram na favela acabam tendo um pensamento diferente, uma cultura diferente, um entendimento diferente do q é ou nao violencia. E nao estou generalizando, tem gente muito boa e trabalhadora lá, mas chama atenção esse tipo de atitude, de tomar a violencia (seja ela de qual tipo for) como algo natural, como parte do cotidiano... pior q, para muitos, ela é mesmo parte do cotidiano...

E pior ainda é q se leva muitos anos para efetivamente minimizar as feridas que se criam com essas atitudes, ajudar crianças e adultos a superar, continuar, perdoar...ainda bem que muita gente consegue e consegue fazer diferente na vida adulta!!!

Sim, viajei...rs. Mas é q convivo com isso bem de perto e é triste demais. O amor de pai e mãe me parece algo tão natural, mas para muitos nao é. Nem todos tem a graça de ter amor, apoio e cuidado, infelizmente. Quem sabe será assim, quando todos formos pessoas melhores...

O importante é quebrar o silêncio. Se permitirmos q seja sempre assim, nunca haverá mudança e não há como crescer sem mudança.

Bjos, mana querida.

Anônimo disse...

Oi, Flávia.
Foi inevitável ler e me identificar com essa história. A diferença é que, no meu caso, o agressor era o pai. Meus irmãos e eu éramos considerados as crianças mais educadas da família, do prédio, da escola. Pq sair da linha, reclamar, às vezes até respirar virava uma chuva de pancadas.
Que bom que A. saiu desse ciclo ainda criança. Eu precisei de 22 anos pra abandonar a casa dos meus pais. E hoje curto a minha liberdade, valorizada em cada minuto, em cada ação.
Bjo!

Késia Maximiano disse...

Infelizmente, esse foi apenas mais um 'A' entre tantos outros ne?

Eu amei o post, a sensibilidade, e a forma como vc se colocou..

Beijo grande

Sempre querendo saber disse...

Chorei aqui!

Dexter disse...

Confesso que às vezes prefiro não saber dessas histórias porque fico deprimido. Mas fechar os olhos pra isso é ser cúmplice desses criminosos.

Beijos!

Anônimo disse...

Fiquei arrepiada. Eu tenho meus dois meninos terríveis e só em pensar que uma coisa dessas poderia ter acontecido com eles me dá nó no estômago. Acontecer com qualquer outra criança é igualmente impensável, apesar de ser tão real... infelizmente.

beijinhos, menina