segunda-feira, 29 de junho de 2009

(A)Parte

"As cartas não eram para olhos profanos.
Não interessavam a mais ninguém.Queimei
tudo na lareira da sala, quando não havia
ninguém em casa. Cartas em fundo de gaveta
podem ser perigosas. Basta um desenho antigo,
já amarelado, um perfil marcante como uma
figura de proa avançando pelo grande
mar onde para sempre nos perdemos."


Lia Luft - Adria

Soundtrack: Coco Rosie - Not For Sale




Eu ouço a última frase fechar silenciosa a porta e caminhar sozinha rua abaixo, ainda meio atordoada por se saber inútil. Não tive coragem de dizê-la. A mim, parece ser meu coração pulsando na ponta da língua que evito pronunciar, prefiro deixar meu coração em segredo. E, das coisas todas que eu disse até aqui, nenhuma me revela tanto quanto essa omissão, que então me torna uma incógnita como o tal raio que não cai duas vezes no mesmo lugar e veja só, ele cai. Mas a frase, essa se foi sem beijo nem insistência, se foi apática e vagarosa, quase autômata, eu era uma sua desconhecida e era impossível nos reconhecermos, nós que alguns poucos momentos antes ainda nos pertencíamos. Ela não cabia, não cabe, na minha voz – a minha voz tampouco cabe no seu sentido, eu não me encaixo mais porque se dissipou de mim a tal da idéia, e o fez com uma velocidade inesperada como esse vento quente que sopra do lado de fora e corta ao meio a rigidez do inverno. Da última vez que lhe escrevi fazia um vento assim, não sei se você se recorda – e as palavras se balançavam alvoroçadas nos meus cílios fingindo-se de borboletas, que as palavras criam asas, sim, e frágeis nascem e frágeis morrem, e inocentes se atiram em vôos cegos, as minhas, cílios pesados de verbo eu sempre tive. Olhos verborrágicos. Meio por insolência, meio por descuido. Mas não é disso que falo hoje, eu hoje não falo nada. Eu hoje chão, calçada, jardim, almoço, varal, música, fé, ponta de pé, corpo de bailarina assim no espaço solto, palavra deixo ir que não me pertence. Não essa. Ou aquela; não aquela. E já não é coragem que me falta, é coragem que cultivo. Prefiro deixar meu coração em segredo.



26 comentários:

Marcos Vinícius Almeida disse...

Nenhum segredo dura para sempre.

Marcos Vinícius Almeida disse...

Exceto, é calro, as coisas inexistentes.

Jazz disse...

sim, deixe-o e segredo pois é valioso e só nós sabemos o quanto.

Marcos Vinícius Almeida disse...

Bom... Solipsismo é sinônimo de inexistente e em doses cavalares podem levar a morte: vide Narciso.

Nanne disse...

Realmente o coração é um poço de segredos...e às vezes é bem melhor guardá-los.

Ariana Luz disse...

Porque eu concordo, que às vezes, é melhor calar.
E já se sabe que o silêncio também faz parte de um diálogo.

Flores.

p.s:Tenha sempre um coração que não se cansa de ter esperança.

Fernando Ramos disse...

Acho incrível seu jeito poético de escrever, Flavinha. Juro, não canso de me admirar! De tuodo o que escrevu, o mais belo e mais forte pra mim foi o coração na ponta da língua. Porque o meu está o tempo todo, mas também faço como no texto: tenho deixado-o em segredo.

Ainda acho que mereço uma visitinha sua, já que nunca mais o fez. :(

Marguerita disse...

Se ainda é segreto é porque merece o status de especial.

Beijos, Flávia.

Altavolt disse...

Flavinha, por mais que a gente te leia, você sempre nos surpreende com a sua capacidade descomunal de tecer com as palavras. Parece que elas ganham outras dimensões em seus poéticos textos. As trilhas sonoras também são sempre marcantes e contundentes. Você tem muito bom gosto! Tem o dom de garimpar novidades e sensações! Beijão!

H L disse...

Caramba Flávia, me vi em teu texto...
realemnte adorei!
lindo demais!

*-*

Jaqueline Lima disse...

qualquer possível compreensão, simplesmente não se encaixa. e aí a gente guarda um segredo para não causar tormento.
posso dizer que algumas coisas são só da gente...

beijos bonita!

Márcio Ahimsa disse...

O coração em segredo sabe o medo a que se pertence. Hoje, cedo, cultivar as órbitas de um viver mais lícito, mais cabível de se preencher de sonhos e dias vagos. Na vaguidão das horas mora uma senhora cega com as pernas entrecruzadas esperando um olhar salpicado de desejo, onde o beijo é um assovio curto e fino: notem no vão de mim a morada perfeita de estar perdido, de estar achado, de estar subvertido e encantado. Pois palavras surdas não ouvem a voz da certeza, pois mudez não fala senão desejos surrupiados ao lamento de não se exprimir cândido como nuvem vaga espalhada pela preguiça de um céu anil, um céu lento e derramado. Hoje, o bojo meu é um amar em excesso que pretendo espalhar por canteiros abertos de meu caminho.

Beijos, Flavita, querida minha. Saudade de estar aqui. Mas eu sempre vou, sempre volto, sempre fico, inesperadamente...

D.J. Dicks disse...

i, minha canceriana favita, parabéns, pelo niver... OUtra coisa é melhor deixar ou coraação em suspenso mesmo. Tem um texto que fiz para ti no meu blog. O parabens é por que não usarei mais a net esses tempos....

DANIEL MORAES disse...

Como diz um amigo meu, "não há segredo, mas sim, não houve hora propícia para se contar". Bjus.

http://contesta-acao.blogspot.com

DANIEL MORAES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bandys disse...

Flavia,
tempos que não passo por aqui e continuas com as palavras belas em segredos ou não.

O silencio do coração é a coragem da alma.

beijos

Tudo ou nada ... disse...

Cada vez mais intenso os sus escritos, adoro. Estou voltando e espero rever tudo.
Bjs

Taynar disse...

Olhos verborrágicos.

As palavras que as gente não diz sempre vagueiam, perdidas, pelas ruas, tentando encontrar portas que sabemos estar fechadas. Algumas foram trancadas na chave.
E eu só espero que fiquem perdidas no meio do mar.


Beijos, mulher

KAF disse...

Flávia,

Sua casa é muito linda. Estarei visitando para ficar sempre informada. Afinal, queremos ser sapientes de todas as variantes poéticas que cercam este belíssimo Universo.

Abraços,

Kaf

Cláudia I, Vetter disse...

porra, flávia...
é absurda, absurda a conexão que consegues dar junto ao poder da literatura de falar o que cala,
de fazer bela a fadada desgraça,
de acompanhar a nossa solidão no segredo da vitalidade,
de ser humano, de ser só,
e tão puro, tão dentro, que não tem como resumir, mas presume nessa colisão com a verdade uma transcedência que não se explica mas se vive.

é assim mesmo.

magnífico.

TPeO aRmRoA!

Natália Mylonas disse...

Saudaaades daqui...


beiijos Flá.

Bill Falcão disse...

Muitas vezes essa omissão é necessária. E é o próprio coração que pede segredo.
Bjoooooooooo!!!!!!!!

Nathália E. disse...

Deixo meu coração em segredo para mim mesma. Não sei se faço certo, mas isso me machuca. Às vezes.

.a nega do neguinho. disse...

Flááá..
saudadonaaa canceriana gemaaa!


=)

bete disse...

tava com saudade de te ler.
e lembrar que minha amiga brinca com as palavras, descrevendo sentimentos como ninguém!
bj

Fátima disse...

são essas omissões, esses segredos, pensamentos velados que nos constituem. São palavrar emitidas sem som para que ninguém ouça. Mas ainda assim, são palavras, lembranças e recordações que nos tormentam...