Aquilo que um dia você chamou de amor bateu na minha janela ontem à noite, acometido de uma palidez que me surpreenderia se eu já não o soubesse meio borráceo como um desenho velho de giz, os olhos atônitos desprovidos do brilho que costumavam ter, um desassossego fosco, uma ausência súbita e irreversível. Não sei explicar, mas algo havia de tão comovente ali, naquele conhecido há tanto tempo distante e que reaparecia diante de mim de forma assim inusitada, que eu não soube o que fazer. Desejei convidá-lo a entrar e fazer perguntas calorosamente desnecessárias, um “como vão as coisas” ou “chá ou café?” ou ainda assentir, por educação ou amizade, que sim, me recordo de coisas que absolutamente já não me dizem coisa alguma; ou lhe perguntar se estava tudo bem, se tinha onde ficar, se desejava passar a noite ali pois eu ainda me lembrava: aquilo que um dia você chamou de amor tinha aversão a frio e, de fato, suas mãos tremiam, enluvadas pela temperatura incerta daquele reencontro. Desejei coisas tantas, todas tão cordiais. Aquilo que um dia você chamou de amor estava parado do lado de fora da minha janela no meio da noite e, pasme, embora tão dissolvente, ainda se parecia tanto com você. E eu, que há muito tempo deixara de parecer comigo e me espantara muito com o fato de que ele me reconhecera em meio às tantas outras “eu” que já haviam passado por mim, nada fiz. Nada disse. Apenas o olhei de frente, longamente. Como alguém que oferece, ao punhal, o peito e uma rosa. E anônimo, confuso, quieto, aquilo que um dia você chamou de amor se afastou com a dignidade dos que não pertencem mais ao seu próprio passado e a segurança dos que desconhecem seu próprio destino, sem olhar para trás. E acredite: já não tremia.
E quem respondia era uma estranha que me dizia fria e categoricamente: tu és tu mesma.
(Clarice Lispector)
Soundtrack: Natalie Walker - Urban Angel
Fazia tanto tempo que eu não saía para andar à toa. Desde você. Nem lembrava mais como era essa disciplina de um passo de depois do outro sem necessariamente precisar de direção, a cidade estava lá, inteira, eu só lhe roubaria algumas ruas e ela nem daria falta e eu sou ainda muito justa: empresto, devolvo, intacto. Como no dia em que emprestei seu carro e saí sem fazer barulho para comprar cervejas. Dezesseis para as quatro, se não me engano. Descalça. Clichê, enrolada no cheiro do seu sono. Tarde quente aquela, como nunca houve outra desde que descobri que era uma catarse ver você dormir com os lábios quase imperceptivelmente entreabertos de quem balbucia um desejo sonhado. Energia medida em quanta. Ainda hoje eu não teria coragem de interromper seu sono; a gente dorme, acorda, dorme, acorda, dorme e tudo que quer é desentender que a vida é paga com juros e parar de lembrar de despedidas, o sino da igrejinha velha, lembra?, acabou de tocar, sete badaladas – sete horas, sete dias, sete anjos, sete selos, sete palmos, uma alma vai, outra vem; sete e um. Escurece por onde volto sob um tempo que se fecha e fica tão bonito assim, cinza, sempre gostei de exceções. Ouvi dizer que vão cortar o pinheiro da rua de cima porque cresceu demais e pode desabar, tudo o que cresce demais vira uma ameaça – é assim com saudade, raiva, medo, amor. Amor. Você cresceu demais mas não me importo, portanto desabe sobre mim e outra vez me acaricie as costas com o peso de toda história nossa que cabe nas suas mãos sem medo de me machucar, sou forte o suficiente para você. Para nós. Para quem fui, para quem me tornei – algo parecido com você, sempre que me lembro, e me lembro sempre do seu modo de segurar a xícara e de caminhar de manhã e de abrir um livro numa página qualquer e de, e de, e de. E de. Está tão calmo aqui. Volto para casa debaixo de uma chuva fina, abro a porta, olho o relógio na parede, sete e meia, noves fora zero e resta um: eu. Ainda faltam cinco minutos para mim.
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Depois de um hiato de 4 meses - em que estive ausente curtindo a gravidez e tocando projetos profissionais - eis que o "Sabe de uma Coisa?" está de volta. Agradeço a todos que permaneceram visitando este espaço mesmo durante o tempo de quiescência, aos que mandaram mensagens de "volta, Flávia!" e àqueles que, mesmo distantes, sempre curtiram este blog tanto quanto eu. Obrigada, e bem-vindos todos!