quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Feridas, Suturas e Cicatrizes

O menino chegou pouco antes do meio-dia com aquele corte na testa, resultado de uma brincadeira malsucedida entre amigos. Pequeno, agarrado a uma das pernas da mãe, choramingava menos de dor que de medo da agulha e de toda aquela gente vestida de branco. Quietinho, até, dado o contexto da situação. Não pude deixar de pensar no porquê de as crianças só ficarem quietas quando se machucam (e penso nisso sempre porque já fui uma e, embora tendo sido uma, a questão continua a ser um mistério para mim). 

- Oi.

Nada.

- Oi. Qual o seu nome?

Ele continuou me ignorando. Mas eu conhecia um truque que, até aquele momento, era infalível.

- Puxa. Parece que você se machucou, né? Eu também tenho um desses. Veja aqui.

Ele se virou, ressabiado mas curioso – porque nas crianças, ainda bem!, a curiosidade supera a desconfiança com anos-luz de vantagem. Mostrei-lhe a cicatriz que tenho próxima à sobrancelha direita, estrategicamente disfarçada pelo desenho dos pelinhos. Ele olhou, olhou, deslizou o dedo indicador com a minúcia de quem analisa uma novidade. Estava ganho.

- Como foi?

- Eu caí. Devia ter a sua idade. Quantos anos você tem?

- Cinco. 

- Doeu?

- Deve ter doído um pouco. Mas, sinceramente, não me lembro.

- Levou ponto?

- Minha mãe diz que sim. Uns três. Vê como ficou legal? A gente nem enxerga. Só enxerga se olhar bem de perto, como você fez agora.

- É.

Ele ficou quieto por alguns segundos. Alguns.

- Vou ter que levar ponto também?

- De verdade? Acho que vai, sim. Você é muito bonito pra ficar com essa ferida aberta. A gente faz uns pontinhos, ela sara mais rápido, para de sangrar. Daqui a um tempo vai estar igual à minha e você nem vai lembrar que ela estava aí. Prometo que não vai doer. Tenho aqui uma pomadinha mágica que tira a dor. Você só precisa fechar os olhos. Abra os olhos só quando eu mandar. Certo?

- Tá bom.

Ele finalmente deitou na maca. Pedi que me trouxessem o fio mais fino e apliquei sobre o ferimento um pouco de gel de lidocaína para amortecer a dor, cobri seu rosto com um campo estéril e, quando infiltrei o anestésico local com a agulha de insulina, ele já estava tranquilo e seguro, e não precisou permanecer imobilizado. Os três pontinhos necessários para aproximar as bordas do ferimento foram feitos sem dificuldade embora minuciosamente – pois qualquer tração desnecessária na delicada pele da face pode deixar uma cicatriz esteticamente desagradável. O resultado me deixou feliz: bordas aproximadas e pele sem retrações. Em algum tempo restaria apenas uma linha esbranquiçada e tênue como lembrança. Sua memória de criança de cinco anos não seria páreo para novas aventuras – e ele, quando chegasse à minha idade, provavelmente teria algumas outras marcas além daquela, a primeira, que mesmo discreta e inaparente nunca deixaria de ser uma cicatriz e o acompanharia para toda a vida. Não doeria. Não arderia. Não sangraria. Mas talvez, provavelmente, até, incomodaria somente por estar ali. São assim as cicatrizes: quem sabe incomodem tanto porque, ao olhar para elas, imaginamos que, se tivéssemos feito as coisas de um jeito diferente, com mais cuidado, elas não estariam ali para nos lembrar de algo que deu errado.

São assim as cicatrizes. E são assim as feridas. Evitáveis – mas quem as evita? A gente quer mais é correr o risco. A emoção, a adrenalina, as surpresas do caminho entre partida e chegada. E aí vem o susto quando a gente se machuca, mesmo quando se está ciente de que havia grandes chances de as coisas terminarem assim. Fechar o corte é quase um rito de passagem. E, quando cada ponto já está em seu devido lugar, percebemos que a dor não mata nem dura para sempre, e que há vezes em que a tal sutura é mesmo a solução, embora, num primeiro momento, pareça aviltar ainda mais o que já está suficientemente ressentido – porque ferida aberta, além de doer pra burro, sangra e pior: infecciona. Por mais feio, inchado e roxo que possa parecer, os pontos caem, a vida passa e a gente esquece. A gente aprende, cedo ou tarde, que é preciso ter cuidado para não se machucar e que todo o cuidado do mundo nem sempre dá certo, e que as cicatrizes fazem parte.  Não posso deixar de pensar no porquê de as pessoas só ficarem quietas quando se machucam. E pensando, bem, ainda bem.


Imagem: Google

7 comentários:

Grã disse...

Querida,

Que bom que a ferida do plágio tb foi superada!

Bjo

Flávia disse...

GRÃ,

Ainda dói, viu? Mas, pouco a pouco, a ferida está fechando.

Beijo!

Anônimo disse...

Flávia,

que texto lindo. Imagino as tantas situações que você deve ter para contar, como médica.

A gente se aquieta quando sente a fragilidade. Quem se sente frágil não se mostra, pelo contrário: se esconde. Até se recuperar. Sorte a nossa existir a recuperação. Porque a corda do mundo é bamba, e ninguém aqui é equilibrista, por mais que tente.

Um beijo.

Flávia disse...

MONIQUE,

Lindo e muito certo o pensamento expresso pelo seu comentário. Faço minhas as suas palavras. Gostei muito de ter você por aqui, espero que retorne.

Beijo!

Erica de Paula disse...

Tão lindo...

vc é sempre doce e intensa, na medida certa.

nem sempre comento, mas sempre estou por aqui.

meu coração já se acomoda perfeitamente nas tuas linhas...

Bjos Flor!

Lídia disse...

Flavita, linda... Acho que cicatrizes são semelhantes à aprendizagem, sabe? Cada canto do corpo e da alma, uma "nova disciplina."

Tem gente que aprende e entende, e tem gente que aprende, entende,mas gosta de continuar aprendendo novas disciplinas... não sei até que ponto isso é bom ou não.
Aprendi muitas coisas em 2012 que não quero repetir e principalmente sentir NUNCA MAIS!

Obrigada por continuar sempre a escrever!

Beijocass!
Lí!

(:

Flávia disse...

ERICA E LÍDIA,

Meu amigo Grã, lá em cima, comentou sobre a tal ferida do plágio (e olha que ele nem ficou sabendo do #AyanneSobralGate, pois o stress só rolou no FB e no Twitter). Pois bem: um dos bálsamos para a cicatrização dessa ferida foi justamente as amizades que fiz aqui. E, entre tantas, a de vocês duas me faz mais forte. Obrigada.

Beijo!