segunda-feira, 12 de maio de 2008

Crisálida

Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

(Carlos Drummond de Andrade)

Soundtrack: Rose Hill Drive - It's Simple


Despertou por volta do meio-dia. A cabeça, pesada, pulsava latejante como um ferimento aberto... O olhar ainda meio desfocado procurou preguiçoso pela garrafa de vinho na qual mergulhara na noite anterior. Vazia, abandonada ao pé da cama. Por que não estava surpresa? Não fora a primeira vez que uma garrafa de vinho lhe servira como companhia em uma noite solitária; provavelmente não seria a última.

Enfiou novamente a cabeça debaixo dos lençóis na tentativa de voltar para o sono letárgico do qual despertara a contragosto; o quarto, mergulhado na penumbra proporcionada pelas cortinas cerradas e janelas fechadas, lhe parecia atraente demais para que ela ensaiasse qualquer tentativa de levantar e encarar o mundo lá fora. Foi necessário um grande esforço para que, finalmente, decidisse se desencasular de sua crisálida de cetim e voltar à realidade, embora esta não fosse exatamente a melhor opção segundo seu confuso e peculiar ponto de vista.

Levantou-se lentamente e caminhou, ainda cambaleante, até a janela; experimentou entreabrir as cortinas escuras. Um facho de luz quente e sufocante atingiu-lhe em cheio o rosto que, acostumado à escuridão das últimas horas, contorceu-se em uma careta. “Mais tarde”, ponderou. Agora precisava de um café. Forte, bem forte. Bem quente, para incendiar todo aquele torpor que a envolvia como tentáculos de polvo. Amargo, como o gosto teimoso e impertinente de não sei o quê a habita-lhe permanentemente a boca. Precisava de um café. Colocou a água para ferver, imaginando as moléculas do líquido a se agitarem com o calor do fogo; a idéia de uma ducha morna brotou, lhe parecendo a chance de uma carícia para o corpo martirizado pelo vinho, pelas contrariedades, pela solidão tão odiada e companheira... Sim, tomaria um bom banho e depois, com corpo e alma limpos, sorveria a negra bebida dos deuses.

Abriu as torneiras, regulou a temperatura e, como de costume, observou a água fluir, por alguns segundos desejando que o curso dos acontecimentos que permeavam seus caminhos fosse assim cristalino e previsível. Deixou-se molhar, se permitindo a sensação reconfortante e há tanto ignorada de extirpar tudo o que a incomodava – ao menos por breves instantes – apenas para entregar-se ao prazer de pensar em absolutamente nada. A água quente a escorrer pela pele funcionava como um resgate de si própria. Ouviu o ruído da chuva anunciando-se do lado de fora, o burburinho tímido e sussurrado crescendo e se transformando no majestoso som dos pingos desabando sobre ruas, telhados e paredes. Água, por todos os lados. Água. Como a que lhe inundava os poros. Revisitou os últimos acontecimentos de sua vida: estava cansada desse dormir e acordar sem expectativas, cansada do trabalho desempenhado maquinalmente, cansada dos relacionamentos infrutíferos, cansada, cansada, cansada. O banho lhe trouxera mais do que relaxamento: suscitara o questionamento de estar protagonizando uma existência que não era a sua. Uma idéia louca ecoou em sua mente: se aquela não era a sua vida, qual seria, e quem a estaria vivendo em seu lugar? Quem estaria morando na sua casa, amando o seu amor, passeando com o seu cachorro e fazendo todas as coisas que ela certamente faria, não fosse aquela despropositada troca?

Fechou as torneiras e olhou-se no espelho embaçado com o corpo ainda molhado. Limpou suavemente a superfície de vidro com as mãos; viu um rosto igual ao seu, porém, sob algum aspecto, diferente, a fitá-la com olhos inquiridores. Castanhos como os seus, mas vívidos, curiosos, contemplativos. Pela primeira vez não enxergou as cicatrizes que as tristezas e aborrecimentos haviam entalhado em sua pele clara. Percebeu um esboço de sorriso no rosto à sua frente, retribuiu a gentileza, o rosto lançou-lhe então um dos sorrisos mais bonitos que já havia visto. Decidiu que aquele rosto seria seu a partir daquele momento, o rosto que se havia perdido por tanto tempo mas que reencontrara na água, no espelho, em si mesma, talvez.

Lembrou-se da garrafa de vinho. Não fora a primeira, provavelmente não seria a última. Já não importava; a cabeça não pesava mais. Corpo e alma limpos. O gosto amargo da boca desaparecera como por encanto. Foi até as janelas, abriu as cortinas, deixou que o cheiro bom da rua molhada invadisse o quarto, desistiu do café. Escolheu o vestido mais bonito, justamente o que ficara esquecido no canto do armário por tanto tempo que ela nem conseguia lembrar quando o usara pela última vez. Vestiu, nunca parecera tão bonito quanto agora, percebeu que a lagarta finalmente se havia tornado borboleta. Desceu as escadas correndo, cantarolando uma música antiga, fechou a porta e partiu sem hora para voltar. Saía em busca da sua vida.


Texto publicado originalmente no extinto blog Cotidianidades, em algum dia perdido de junho de 2007. E quem gosta de rock - daquele rock mais puro, com uma levada meio setentista - e ainda não conhece Rose Hill Drive, ouça o álbum de estréia dos caras, intitulado apenas Rose Hill Drive (2006). Vale a pena.

36 comentários:

Anônimo disse...

Passei por uma fase, assim crisálida.. A libertação se deu em poema:

BETTER DAYS AHEAD

Cama desfeita
Mesa posta
Juras de bilhetes
De geladeira

Estrelas à espreita
A noite se mostra
Um sonho de confetes
De sexta-feira

Um letreiro luminoso
Já anunciava
As dores enxugadas
Na esponja do tempo.

Abraços, belíssimo (sim, superlativo) texto!

Paulo Roberto Vieira disse...

gostei muito, parabéns.

se te apetecer visite meu vieiranembeira.blogspot.com,


abraço,


paulo

Ciça. disse...

Eu penso melhor depois da ressaca, acredita? euahuaeuaeh.

:*

Renata Silva disse...

A não ser pelo "beber solitário" - sempre bebo acompanhada - tudo pareceu tão comigo, com minha história.
Já acordei muitos dias com essa sensação, até que um dia me vi diferente.
Adorei.

Beijos

Marcelo disse...

Tem presente pra você em meu blog =)

Smack!!!

˙·٠•● ѕεறிoτιvo ◦ disse...

=/
Pensativa*

Tenho certeza que já li estes dois 1ºs parágrafos em algum livro... será um dejavù.
Ah! O que importa é qe a descrição é muito boa, parece que estamos no lugar citado, vendo cada movimento, cada expressão! Adoro textos que prendem a gente desta forma. Muito bom.
Tomara que ela não vlte a beber denovo... rsrs
Beijo

ray

Caio "Sáraqui" disse...

Gostei do texto, mas ainda estou acostumado com seu ritmo na prosa...

Como é doutora..Achei interessante lhe passar um texto que escrevi há um tempo:

http://pseudocerteza.blogspot.com/2008/01/doutor-eu-te-amo.html


Beijo, PP.

Flávia disse...

JEAN,

Acho que dessas fases todos temos... algumas mais duradouras que outras. Lindo o poema... e obrigada pelo carinho de sempre. Não deixe de me dizer o que resolveu fazer com Demián (rs). Beijo!

PAULO,

Obrigada pelo convite, moço, passo lá sim. E obrigada também pela visita. Beijos!

CIÇA,

Ah, acredito!! Rs... Beijo!

RÊ,

É maravilhoso quando esse dia chega, né? Beijo!

MARCELO,

Rapaz, fiquei feliz igual criança quando vi o que era... obrigada mesmo!! Vou trazer pra cá com mó orgulho. Beijo!

RAY,

Eu juro que fui eu que escrevi, rs!! Mas, como tudo na literatura são revisitações aos mesmos temas, é provável que haja mesmo muita coisa parecida por esse mundão de Deus. E pode deixar - se houver uma continuação, ela não beberá de novo, rs... beijo!

Flávia disse...

CAIO,

Pois é, é bem nítida a diferença de estilos, né? Esse foi o primeiro texto que escrevi pro meu blog antigo. Republiquei aqui justamente para que as pessoas pudessem perceber essas diferenças. Tô passando pra ler o post. Beijão!

leila saads disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
leila saads disse...

Eu tenho um texto com um enredo bem parecido com o seu. Mas minha personagem, pessimista como sou, depois do momento de reflexão e de planos mil, voltou para a engrenagem de sua vida.


Beijos!

Anônimo disse...

Parece que estou lendo A metamorfose de Kafka...Tá muito bem escrito seu texto! Não que os outros não estavam, mas este gostei muito.

E vou levando a vida e deixando ser levada...

beijo!Gisele

Anônimo disse...

Obrigada pela visita, primeiramente.
Gostei muito daqui, das palavras, do modo claro de escrever... parabéns!
Volto sempre agora...

Anônimo disse...

Fla, eu sempre tenho uma garrafa de vinho na minha geladeira....

rs rs rs...

as vezes uma garrafa de vinho pode ser a melhor companhia...rs


Bjao mulé!!!

Flávia disse...

LEILA,

As personagens inevitavelmente refletem a gente, né? Beijo!

GI,

Kafka?? Oxe... honra total, rs... beijão, Gi.

LYANI,

Ah, volte, sim! Vai ser um prazer te receber, como foi um prazer te visitar. Beijo!

TÂMARA,

Eu tb sempre tenho uma, amiga... vinho e boa música, não abro mão, rs. Beijo, mulé!

Mila Cardozo disse...

Humm.... novidades das 2... ai ai ai... hehehe... conta logo que assim me mata de curiosidade!!!! hauahuaua... volto amanhã... mas até posso ter secado já... hauahuahaua
Beijos Mila

Anônimo disse...

Eu encontro sempre a poesia (inexplicável) da vida. Adivinha em que?
:)


Meu amor inesgotável, tá?!
E beijo, beijo, beijo...

Unknown disse...

Flávia,
Texto muito bem escrito, gostei muito!
Obrigada por aparecer lá no meu cais.
Prazer imenso ter vindo aqui.
Beijo,
Ana

Antonio Ximenes disse...

Flavinha.

"Navegar... e renascer... é preciso."

Imaginemos que estamos todos envolvidos... cada um de nós... em sua respectiva crisálida.

Aguardando uma transformação radical.

Quanto ao vinho.

Eu me lembrei de uma comparação.

O vinho é como uma namorada fogosa e sensual... que ao se tornar esposa... se transforma em uma mulher opressora.

A euforia do torpor etílico... e a dor lancinante de uma ressaca matinal.

Voltando ao texto.

Lindo como sempre.

Abração forte procê.

Anônimo disse...

Dessas coincidências da vida, hoje também escrevi sobre metamorfose no Quintal.

Seu texto é lindo, cheio de delicadeza. Senti-me na pele da sua personagem em muitos momentos. Eu também me (re)descubro assim, quase diariamente. Acho que é nesses momentos de reconhecimento que somos realmente felizes.

Beijos.

Si disse...

E quando a lagarta achava que o mundo tinha terminado, ela virou uma borboleta. Amo essa frase.

Meu msn é sicafe@hotmail.com

Beijos da moça verde para a moça linda.

Van disse...

Quem nunca teve suas crisálidas que atire a primeira asa!!!!!!!!

Luv!

Tudo ou nada ... disse...

Minha vida é uma eterna transformação, acho q nuca deixarei de viver crisálidas.
bjos

Oliver Pickwick disse...

Me lembro deste post. Se não me engano é aquele em que algumas "mentes poluídas" (leia-se: Mila) insinuou... como direi... ah!... "algo mais" no tal banho, se é que me entende? ;)
Eu, é claro, jamais imaginei "tal coisa", inclusive parabenizei-a por uma prosa quase poética e tão bonita.
As bocas de Matilda não dão mole, não é?
Um beijo!

Samantha Abreu disse...

bela narrativa!
uau!

:D

Ceisa Martins disse...

Nossa... texto encantador! Dá vontade que ele não acabe...

Eu tb vivo me lembrando de garrafas de vinho!

rs

Beijos!

La Maya disse...

Como é que eu não conhecia ainda o Rose Hill Drive??
E como é que eu não conhecia ainda sua página?!
Sei muito bem do que você escreve neste texto... ah, sei. Conheço muitas das sensações. Mas como preciso de um vestido colorido, de um sorriso no espelho e de asas pra voar pra longe de tudo o que me prende, sem hora pra voltar!...

Com sua licença, vou linkar sua página viu!

Beijos

Dayane Carmona Poeta disse...

Bom saber que eu existia antes mesmo de eu entrar nesse seu mundo *---* :)

Tão bom lêr isso, conseguir entrar nas palavras que pouco, a pouco se tornam frases que rodam na minha cabeça e me fazem pensar em algumas coisas e até mesmo refletir.

Queria eu sair a busca da minha vida.. creio que as coisas seriam melhores :}

Acabo de te linkar :*

benechaves disse...

Um bom texto, minha querida, um bom texto. Sempre naquela sua narrativa que me encanta e que já pude expôr aqui outras vezes.

Um beijo carinhoso e de saudade...

Filipe Garcia disse...

Flávia,

fiquei aqui todo besta com seu estilo de escrever. Esses pormenores que vão delineando a cena na cabeça do leitor e todo esse sentimentalismo e sensibilidade entranhados em cada palavra me deram um gosto especial pelo seu texto. O tema que captei foi a solidão, a busca incessante do homem em ver-se livre dela, seja por meio de um café, de um bom banho, seja encarando-se no espelho e mandando pra fora a lagarta enclausurada.

Muito bonito e real! Gostei demais.

beijo

Nathália E. disse...

Por isso que eu acredito tanto no poder de um sorriso.

Beijo!

Sunflower disse...

AMEI a música.

sou mais pra cobra que borboleta, uma cobra boazinha, não sei se fico mais bonita nem posso voar, mas fico maior e vivo mais.

AMEI a música.

Beija Psssss

Aline Ribeiro disse...

O que uma ressaca não faz com uma pessoa heim? A faz renascer e ir pro mundo.

bjm

Anônimo disse...

Sabe Flávia, sinto-me como a sua personagem. Não me encontro em mim mesma, preciso me reencontrar, antes que fique perdida para sempre. Caminho com passos trôpegos, cambaleantes, inseguros. Não sei o que está me fazendo ficar assim, talvez seja o mundo, talvez sejam as pessoas, talvez não seja ninguém. Mas a certeza que eu tenho é que preciso sair logo do casulo e me tornar uma borboleta, livre. Muito livre!

Muito obrigada pela visita. Amei seu blog também. Vou adicionar em meus links.

Anne disse...

Lindo, lindo, lindo...eu já conheço pq sempre te lia, mas ler vc nunca é cansativo nem chato. Eu leria tuuuuudo denovo, sempre!

Maninha, amo vc. Aliás, obrigada pelos seus torpedinhos tão fofos, fico sempre sorrindo com eles!

Beijossssss

Anônimo disse...

Excelente conto! Bem construído, com passagens bem claras e muito descritivo! Muito bom mesmo, parabéns!