segunda-feira, 26 de julho de 2010

Polaróide

tudo dito,
nada feito,
fito e deito.

(Paulo Leminski)

Soundtrack: Iron and Wine - The Sea and the Rhythm






Hoje, por um momento, pensei mesmo em lhe telefonar.

Eu, que algumas vezes mal me lembro da sua voz e, noutras, me espanto com a nitidez do seu timbre a invadir meu esquecimento e se aninhar nos meus ouvidos em minhas noites de insônia, pensei mesmo em lhe telefonar. Não me agrada nem um pouco dizer “oi”, nem perguntar trivialidades, nem me despedir; então, em resumo, nem sei por que motivo lhe telefonaria. A verdade é que senti que lhe devia isso: confessar que a tal foto – a mesma que lhe afirmei, com o rosto anuviado por um quase orgânico impulso de fingir a indiferença que nunca fui capaz de representar sequer razoavelmente, ter perdido num surto de voluntária displicência – ainda existe. A parte estranha é que, de fato, não senti necessidade de falar com você: a necessidade era de dizer nada e estar, beber esse tempo partilhado num copo de prata, sentir seu sabor encorpado no vermelho da língua. E, se tivesse de dizer alguma coisa, diria somente que aquela vontade que um dia senti de nunca soltar a sua mão ainda está acima dessa desfeita que você me fez: de arrancar de mim a parte sua que me fazia mais eu, eu era mesmo mais forte quando meu olhar desfalecia enxergando além do que jamais vi antes de aprender a observar o seu sorriso surgindo para se espraiar em todos os lugares que minha mente alcança. Ausente, sua boca ainda me fala daquelas histórias contadas com suave saliva que me partiam e partem ao meio, e se funde comigo, e vai virando esse instante que engole as horas e as cores daquela fotografia que tiramos no único dia que, para nós, não terminou, porque era feito das verdades que nunca nos dissemos; então, alheios a nós, intimamente desconhecidos de nós, naquele dia fomos felizes. Mas não ligue, nem se assuste e nem se impressione – a foto vai ficar exatamente onde está e o telefone também, isso logo passa, quem sabe é apenas melancolia. Ou saudade com meio palmo de língua para fora, cansada de ser.



18 comentários:

Ivanúcia Lopes disse...

"A parte estranha é que, de fato, não senti necessidade de falar com você a necessidade era de dizer nada (...)"

...Muito bom!

Adoro passar por aqui. Revigora. Me faz refletir. Viajar.

Seguindo já há um tempinho...
;)

Beijos!e parabéns!

Priscila Rôde disse...

Não sei se a saudade cansa, se ela mesma cansa de alguma coisa. Só persiste. E persiste bonito.

Seus textos são maravilhosos!

paulo disse...

Parece que as fotografias fazem parte de nossas vidas. O problema é que elas são estáticas e só retratam o momento que num piscar de olhos se perderia no tempo se não ficasse registrado, ali, naquele papel...

Beijo, Flávia, muito bom o texto.

Anônimo disse...

Amiga-metade-minha,

Tenho exatamente isso; o que me faltava era ver escrito.

Ainda bem que você existe. E mesmo que o tempo corra e eu não te veja, eu sinto.

Beijos. E amor, basta.

Anônimo disse...

Sério: se eu tivesse lido esse texto dias antes eu não teria mandado o e-mail que mandei. A sensação que sentia era a mesma que a sua.

Lindo texto.

Anônimo disse...

Certas saudades são tão boas, nem que seja para somente para verificar que nossa história ainda estão íntegras dentro de nós.

Saudades, menina. ;)

beijocas

Flávia disse...

IVANÚCIA, PRISCILA,

Obrigada e bem-vindas sempre!

PAULO,

Fotografias são a segunda maior semelhança com máquinas do tempo. Só perdem para a memória...

PATI,

Basta :)

MONIQUE,

Talvez devesse tê-lo escrito... quem sabe seja ele o divisor de águas?

MI,

Muita saudade!

MARCOS,

Sem desabafos. Exercício literário MESMO ;)

Tatiane disse...

Sem nenhuma surpresa outro lindo texto...me tornei sua fã a pouco tempo, e apesar disso já estava com saudades dos seus escritos....Um beijo e ótima semana....
PS: Naum sei c teve tempo de ver mais te mandei um email, sei q naum tenho essa intimidade contigo, mas era só pra te falar como gostei desse seu cantinho....

Michelle Siqueira disse...

Oi, Flávia.

Quantos sentimentos... Eu já senti tudo isso, identifiquei cada sensação. Na verdade, numa outra vertente real, ainda sinto.

Quem sabe é melancolia? Não. "Se isso não é amor, o que mais pode ser?".

Gostei muito.

Um abraço,
Michelle

Carolina disse...

Sabe, eu ando tendo umas vontades loucas de ligar para um certo ser aí. Dizer tudo e dizer nada. Mas então passa, e também acho que era só melancolia. E saudade, a mais pura saudade.
Um beijo

Ceisa Martins disse...

Nossa...
Que lindo! Que sentimento... Intenso!
verdadeiramente o que sinto expresso tão bem!

Beijos!

Patrícia Garbuio disse...

Repetidamente digo como seus textos são intensos e lindos.
bjssss

Marguerita disse...

Aposto que neste caso, seria saudade com meio plamo de língua para fora.

Bjos, querida!

Leticia disse...

Tantas senti essa necessidade de falar sem ter exatamente o que dizer e várias vezes assim o fiz que hoje me é impossível me expor de novo da mesma forma.

Em certa altura da vida a saudade ainda martela mas a dor que vem junto da presença da pessoa é tão excruciante que estar observando sem dizer se torna a melhor proteção.

Anônimo disse...

interessante como atuitada que te passei (seu e-mail é o mesmo ainda? acho que é) foi por acaso, e vim aqui pra perguntar sobre o e-mail, e aparece esse desabafo carregado de sentimento

enfim, boas coincidências (ou seria conspiração do acaso?)

Flávia disse...

ANÔNIMO,

Sim, o e-mail ainda é o mesmo. Mas e vc, é?

Anônimo disse...

bem você: que desiste das suas desistências. lindo.

:*

Nickita bacana lá da martinica se veste com uma casca de banana nanica! disse...

Quando venho aqui sinto que você conseguiu transpor em palavras tudo que penso!
Simplesmente perfeito!!