quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Exercício Para Parar de Pensar

Das lembranças não havidas escorre um resto
de mim;
quase nulo, e pequeno.
Mas, astuto, se agiganta
e vira Eu completo e sem memória,
incoercível e largo Eu.
Escolho-me.


Soundtrack: Black Crows - Sometimes Salvation




Enquanto a memória das inexistências mina pelas torneiras abertas, desligo o telefone e o pensamento para que ninguém chame meu nome em vão – mas é impossível, ao menos hoje, arrancar de mim esse nome amargo pendurado nos lábios, e esses sons hostis cravados na minha língua. Então engulo as letras, e os cacos pontiagudos das palavras trituradas vão ferindo a garganta e regurgitando impacientes, e sempre me enchem a boca e o peito. Falar nunca é fácil. Enquanto o dia borra de tic-tac-tic-tac-tic-tac essa irritação zombeteira repousada sobre meu ventre e os segundos pulsam esparramados sobre o piso frio, quase esqueço. Quase, pois da minha vida inteira eu não me recordo mais e do que não vivi, eu me lembro. Eu me lembro, e como pode essa lembrança se impor assim tão nítida, teimosa e nítida, indesejada e nítida, esvaecendo com um único “click” minha resolução de não lembrar? Aqui estou “sssst, silêncio, beije a minha nuca, Esquecimento, eu te assusto?” – e o pensamento avança nesse desarranjo dual, sssst, click, cheio de vontade própria, eu acreditando e desacreditando nele – sou falha, eis a minha perfeição. Calar nunca é fácil: eu derramo o não-dito coração adentro, um dia me aquieto. Enquanto isso, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, click, sssst, tic-tac, perfilados, um a um, entre mim e a outra margem do som.


41 comentários:

Anônimo disse...

Estava passando pelos Blogs para ver se havia alguém que tivesse atualizado e feliz encontro ocorre. Encontro o seu atualizado.

Pois já me batia a saudade de aqui estar! Falar nunca é fácil e a lembrança sempre é dificil. Hoje não estou nos dias alegres de escrever, estou aqui resgatando a saudade de lê-la e senti-lá mais próxima, pois é isso tuas palavras fazem; elas me aproximam de você.

Abraço, até breve,

R.Vinicius

Oliver Pickwick disse...

Desconfio desses seus "click, sssst, tic-tac". Senão, não teria harmonizado tão bem o existencial impregnado no texto, com tantas onomatopéias. Inventou a engenharia literária. ;)
Um beijo!

Grã disse...

Prá parar de pensar, NÃO leia "Ácida: Poesia é risco!"...

tá-tum, baby!

Naomi Conte disse...

ah, essas malditas/benditas palavras...

Regular Joe disse...

Flávia, se você pudesse me ver agora, notaria que estou boquiaberto.
Você doma as palavras como quem domestique um tigre completamente selvagem e dele faça um gatinho de estimação. Você literalmente brinca com as forças da natureza, como se fosse uma daquelas divindades Celtas que conseguiam mudar o tempo. Às vezes termido de ler o que você escreve e penso em Prospero, em "The Tempest", de Shakespeare, que dava ordens a Caliban, a duendes, a fadas, e você faz das letras isso, justamente isso.
Que dom, querida, que dom.
Beijos nas mãos mágicas que acionam o seu teclado. Beijos sinceros e sentidos do João

Anônimo disse...

Bom dia!
Eu tb to num tic, tac, shhh...
Mas sem ninguém pra beijar a minha nuca

Anônimo disse...

Bom dia!
Eu tb to num tic, tac, shhh...
Mas sem ninguém pra beijar a minha nuca

iaiá disse...

calar nunca é fácil, então derramar o coração em belas palavras ajuda...e faz bem pra vc e pra quem lê.
bj

Filipe Garcia disse...

Cê num tem idéia do monte de coisa que fui sentindo ao ler seu texto, Flavinha. Juro que engoli cacos de vidro e senti a língua arder em sangue. Impressionante como você faz essas coisas! As onomatopéias deram um efeito fantástico, me deram a mão pra pular pra dentro das suas linhas. Você não tem igual.

Beijo.

Rodrigo Carreiro disse...

Po, Flávia, essa música é sensacional! Já peguei meus CDs do Black Crowes aqui pra ouvir mais
;p

Flávia disse...

RODRIGO, IARA,

Não sei o que é mais difícil: calar, falar ou digitar com esse braço dolorido, rs.

MOHAN,

Háim?

OLIVER,

Será que com essa, finalmente, consigo entrar para a história? ;)

GRÃ,

Claro... que lerei! :D

NAOMI,

Praticamente um tsunami sonoro engasgado...

SIEGER,

Querido, se o esquecimento topasse me dar esse beijo, eu me daria por feliz, sabe? Se esquecer é um santo remédio, eu tenho adoecido por falta de prescrição adequada.

JOÃO,

Nossa... que fica boquiaberta sou eu. Muito obrigada! :D

FILIPE,

Ah, querido, obrigada! Só me desculpe por, dessa vez, ter feito vc sentir coisas meio desagradáveis :)

RODRIGO CARREIRO,

Essa música é boa mesz :)

Unknown disse...

De vez em quando fico assim, mas sei que é passageiro...
Abraços

Rem.: K. disse...

Sentir saudades do que não foi vivido...
Um tanto quanto comum entre os mais sensatos...
Texto maravilhoso, como todos!
Beijão e um ótimo restinho de semana

Cara de 30 disse...

Bom exercício... O problema é quando você começa a escrever isso tudo, pensa de novo... :(

Triste deve ser lembra-se do que não viveu...

Anônimo disse...

Palavras que são amigas e às vezes nos sufocam também...
Bjitos!

Anônimo disse...

A nitidez da lembrança não desejada é a força para continuar, seja em desarranjo ou harmonia.

Que belezura de texto flor

lindo dia
beijos

Altavolt disse...

Não é fácil, Flavinha. Uma máquina de sentir e pensar como você jamais irá conseguir ficar sem pensamentos. Está "condenada" a refletir e opinar sobre tudo, sem jamais se omitir. Sentir e viver cada emoção, sem jamais neglicenciar. É o preço que se paga por uma consciência e um coração tão plenos quanto os seus. Será que os que pensam menos vivem mais e melhor? Uma vez adquirido determinado estágio de consciência, passa a ser imoral não praticá-lo. É o preço que pagamos. Quanto a você - adoráveis olhos castanhos da web - há muito tempo não conhecia alguém tão transparente, sincero e nobre na arte de encarar a vida. De maneira honesta e pura até a alma. Todos que te seguirem estarão num caminho verdadeiro, que até pode ser árduo, mas leva sempre ao bem. Grande beijo, menina linda!

Van disse...

É minha linda.... a tua perfeição é justamente essa: tuas falhas, teus quases, tuas palavras tão minuciosamente escolhidas e colhidas, tua alma mansa e furiosa, teus sons e tudo..... É mesmo perfeita minha querida twin-sumida-amada-lindeza.
Beijucas

Anônimo disse...

Perfeita vc, e tudo que escorre por suas mãos, vindo de pensamentos.

Calar nunca é fácil e falar é tão dificil quanto ter pensamento inteiro na cabeça e sentimento fragmentado no peito.

O segundo é mais frequente. rsrs

beijosss

Claudinha ੴ disse...

oi Flávia, gosto da maneira como escreve os sentimentos. Turbilhões, calmarias, a gente sente tudo isto, como os sons, como as torneiras abertas e seus pensamentos gritantes!Adorei.
Beijo!

Anônimo disse...

Comentário-recado - Oi, está tudo bem com a senhorita? Acho que meu E-mail está com problema =/

Abraço, até breve,

R.Vinicius

Anna Bueno disse...

"Quase, pois da minha vida inteira eu nao me recordo mais e do que não vivi, eu me lembro." É por isso que "falar nunca é fácil". Texto lindo, disse muito ao meu coração nesse momento.
Um beijo, Fravia.

Nathália E. disse...

"(...)pois da minha vida inteira eu não me recordo mais e do que não vivi, eu me lembro."
Mais uma vez você colocou em palavras exatamente aquilo que sinto.

:)

Eliana Mara Chiossi disse...

Feliz de encontrar uns textos tão bons...


Beijins

Monday disse...

Sempre dá vontade de por pra fora, não? Por isso que é difícil calar ... e se calado ficar, o sapo há de ser engolido. Infelizmente, menina, o moto-contínuo do pensamento jamais findará para ti, pois o dom tem sempre um preço a se pagar. A capacidade de sonhar acordada vai te trazer em reflexo na retina as imagens que nunca viu, mas que poderiam ter sido reais um dia.
Essa mistura de sentimentos que nos bloqueia as falas de naturalmente se pronunciarem, isso é só pra quem tem um coração e não um feixe de músculos cardíacos.
E essas formas verbais diferenciadas que sempre encontram acolhida nos teus lindos textos são a mais pura tradução da beleza que se enxerga quando lemos o teu ser, menina.
Não contrarie tua natureza se ela te pedir para falar: a mesma coceira que te provoca o som chama o teu silêncio quando se esvai ...

Anônimo disse...

Houve um tempo, Flavia, que achei melhor recolher os sentimentos e emoções, colocando-os de molho até segunda ordem.
Não foi uma boa idéia.
Tempos depois, quando achei que já poderia devolvê-los ao mundo, custei a achá-los.
Foram tempos difíceis, aqueles.
Quando conseguia chorar, não achava como parar. Quando conseguia rir, passava dos limites.
Ridículo!
Hoje já estou "normal", e como é bom, minha querida!
Como é bom externar aquilo que sentimos, com tranquilidade, sem se importar com o que o outro poderá pensar porque, afinal, somos aquilo ali mesmo, e o que se há de fazer?
Você é ímpar no jogo das palavras.
E tua alma escorre límpida, juntando as letras em um desenho incomum, na folha branca (ou na tela do computador...)
Ssssst, tic-tac, click.
muitos beijos

Sueli Maia (Mai) disse...

Oi Flávia, dizer o óbvio?
É, é mesmo lindo!
E se "...entre mim e mim há vastidões mil..." Voltarei sempre e mais para ler os teus "não-ditos" originais.
Carinho e saudades.

Bandys disse...

Ter o dom da palavra não é pra qualquer um não...
Muito bom, moça. Voce tem esse dom

beijos

Anônimo disse...

Lembrar, esquecer...

Quanto maior o esforço para um, maior o consentimento do outro.

Lembrar, esquecer...

Anônimo disse...

É aquilo.
Por um triz. Até ele, o triz.

E essa música destrói minhas discrições. E eu não aguento.


Meu silêncio tá dizendo mais, e os meus olhos, Vc sabe, sabe.
Meu beijo, amiga, e todo o resto.

Jana Lauxen disse...

"Sou falha - eis minha perfeição".

Magnífico, Senhorita Flávia.
:)

Nadezhda disse...

Sobre o título: Já tentei vários exercícios, mas não consigo ;)

Anne disse...

Lindo! Adorei, Flavinha. Infelizmente parar de pensar e tb esquecer são praticamente lendas no nosso mundo. A gente nunca esquece, apenas ressignifica. "Sou falha, eis a minha perfeição" - é, a minha tb. Sou até bastante falha, mas ao menos erro tentando acertar, erro testando os meus limites e aprendendo a cada dia coisas novas, novas formas...

Lindo como vc, doce e suave! Vc é uma das pessoas mais lindas que conheço, sem dúvida! Não vejo a hora de poder te dar um abração "de urso", Dra. rsrsrs

Amo vc, infinito!

Chantinon disse...

Ô coisa boa é passar por aqui :)
Sempre tem algo novo.

Da uma olhada (ouvida):
http://www.myspace.com/thebutterflyeffectau

Pode chamar isso de SPAM de musiqueiro :)

Bjs

Adriano Queiroz disse...

Senti Clarice aí.
Esta coisa existencial, com uma fala interiorizada.
Adorei.

Novamente parabéns!

Abraços.

Jana Lauxen disse...

Flávia querida!
Tem um selinho prá você lá no meu blogue.

:)

Alexandre Lucio Fernandes disse...

Poxa Flá, para de pensarem algo é tão difícil. Até hoje tenho dificuldade pra esquecer algumas coisas que me fizeram sofrer ou me deixava angustiados. Embora todas me trouxeram aprendizados preciosos.
:)
Grande Beijo Flavinhaaaa.

Jéssica Souza disse...

Ah, Flávia, viciei em teus textos, pois sentia falta de coisas que me tocassem, inquietassem-me e tua fazes isso comigo.
Sem saber, acabaste escrevendo sobre mim e minha vida. Esse tempos, tenho me sentido com os "cacos pontiagudos da palavras trituradas ferindo a garganta"!
Lindo! Parabéns...
Beijos

Ruberto Palazo disse...

É incrivel como aquilo que nao dizemos nos destroi por dentro, nao é?

Beijos Hermana!

rogério disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Taynar disse...

Nossa, entrei aqui e li isso.
Exatamente o que eu precisava pra terminar minha noite.
Não ser encontrada e me encontrar, ou não, num outro lugar, num outro alguém.
Simplesmente estar sem sentir. Sentir sem possuir. Possuir e sabe Deus mais lá o quê.

Eu quero engulir minhas palavras, meus sentidos, e só flutuar...

Beijos, moça!
Super falta de conversa ctg!
Beijos